Na postagem anterior, a tentativa
foi conceptualizar a interdisciplinaridade de maneira breve e sucinta;
provavelmente, tentar-se-á realizar mais desdobramentos acerca de sua
terminologia em outros momentos, visto que sua análise teórica - como reflexo
de sua práxis - é, indubitavelmente, interminável. Mas se há necessidade de
buscar mais acerca de sua designação, recomendam-se leituras como
“Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa” de Ivani Fazenda; “Interdisciplinaridade
e patologia do saber” de Hilton Japiassu; “Interdisciplinaridade: ambições e
limites” de Olga Pombo; “Introdução ao pensamento complexo” de Edgar Morin; “A
fala” de Gusdorf.
Também foi mencionado o
conceito-metafórico de “Sombra Falada” – este, nesse momento, será mais
explorado - cuja designação remete à relação que há entre a mãe e o seu bebê –
fenômeno muito utilizado pelos psicanalistas, nesse caso, a atribuição é de
Piera Aulagnier – onde este tem como sua sombra a fala de sua mãe cujo discurso
impõe em seu filho um desejo que é seu (da mãe). Nesse sentido, há uma fala que
não é de si, pois pertence a outro. Se se transpõe esse caso em outra dupla
relacional, como no caso do discípulo-preceptor, a sombra projetada pelo molde
discursivo do preceptor configura o modelo a ser seguido pelo discípulo, este,
nela, busca se guiar, esforçando-se – de maneira disciplinada - para que, dessa
maneira, tenha êxito teórico-prático da disciplina que está em busca de
compreensão: é aconselhável, para isso, sem sombra de dúvidas, ter disciplina.
A interação a qual é estabelecida
por essa dupla se dá a partir da transmissão metodológica, técnica e teórica ao
discípulo pela via da disciplina cuja linguagem nela pode se envolver
entremeando-se por um sistema sígnico cujo conteúdo será elaborado. A sombra em
disciplina aguarda a chegada do sujeito-a-ser-significado, este, nela se aloca,
guia-se pela sua sombra cuja ação é discipliná-lo. Ocorre que, esta ação
subjetivante-disciplinar atua de tal modo que nem sempre acompanha o molde no
qual se configurou para encaixe, é suscetível de se destoar à sua imagem e
semelhança; múltiplas intempéries podem ocasionar sua não introjeção podendo
esta ser ou total – indo seja ao oposto dela ou, simplesmente, à separação sem
fazer oposição, se é que isso é possível, mas discutível – ou parcial –
adere-se ou a algumas partes dela e, dessas, configura-se em outra, ou, além de
aderir a algumas de suas partes, acrescentam-se novas, tendo alguns aspectos
originais e outros já nela existentes. Dessa maneira, o discípulo acaba por ele
mesmo, em algum momento, falar sua sombra que, como mencionado, pode se dar de
maneira ou parcial ou total; então, essa se reconfigura em outra gerando outro
modelo de sombra cuja repercussão é falar uma nova disciplina – esta,
repetindo, parcial ou total em relação à anterior. Vale destacar que esse
processo nem sempre ocorre, o discípulo pode se manter fiel à sua sombra de vez
que ora dela terá consciência ou não, inclusive pode se esforçar constantemente
para moldar seu corpo à sua pré-projeção – pois a sombra falada, nesse caso, é uma
projeção de cunho disciplinar anterior ao corpo subjetivo.
Quais fenômenos podem ser destacados como
fatores hipotéticos desse processo de não cumprimento do corpo subjetivo à “sombra
(disciplinar) falada”? Alguns serão destacados, provavelmente existam diversos,
mas nada impede que em outros momentos sejam postados. A personalidade do
discípulo - da espécie humana - envolve – descrevendo-a de maneira sintética –
tanto os aspectos de temperamento quanto os de caráter, os primeiros mais
relacionados à estrutura genética e fisiológica; os segundos, ao campo externo e
relacional. Portanto, frisa-se que há uma relação mútua entre temperamento e
caráter (temperamento + caráter = personalidade). Os traços do modo de ser
podem influenciar o desenvolvimento de posicionamentos divergentes à disciplina
cuja sombra originou; um sujeito que manifeste mais críticas e que tenha um
modo autônomo de viver, provavelmente irá perceber que sua sombra disciplinar
não condiz totalmente consigo, dessa forma, irá se movimentar total ou
parcialmente contra a ela podendo gerar, então, uma nova disciplina – ou nem
tão nova, mas com algum grau de semelhança - elaborada por si.
O tipo de ciência também contribui
para o desenvolvimento de divergências entre discípulo-preceptor. Cada área
científica possui as suas especificidades e particularidades em seu modus operandi cujo processo de
ser-científico configura, em certo grau, o fenômeno de ser-sujeito. Em palestra
sobre Freud e a Psicanálise, o filósofo Ney Branco, ao tratar sobre a teoria de
Foucault, relata que, para este teórico – e pelo que compreendi - existe um
fenômeno interessante pelo qual o funcionamento científico perpassa: existem
teorias cujos pós-teóricos delas podem seguir fielmente o seu modelo
disciplinar; há outras em que isso não é possível, os pós-teóricos delas terão
que segui-la ou parcialmente, ou se separar dela totalmente – retomando: se é
que de maneira total é possível, mas discutível. Por exemplo, Freud está sempre
em destaque no âmbito científico, visto que, para elaborar ou uma teoria
pós-freudiana ou, inclusive, uma contra-Freud, é necessário, inevitavelmente,
mencionar, descrever e compreender a Psicanálise freudiana para realizar esse
trabalho. Nesse caso, a sombra-falada-disciplinar psicanalítica de Freud estará
atuando no corpo-subjetivo do sujeito, este, então, para formular sua teoria,
irá partir dessa sombra mesmo que dela tenha que se desfazer em algum momento.
Isto o torna discípulo, necessariamente? Não, mas, de alguma forma, tem que
compreender essa disciplina - às vezes, compreende melhor do que o próprio
discípulo, mas para isso, teve que receber instruções e aprendizagens, funções
semelhantes ao discípulo.
Outro fenômeno destacado é o
acompanhamento das modificações da realidade externa, ou seja, o contexto
sócio-histórico-cultural sofre mudanças ao longo do tempo e, também, seu
espaço. Nesse caso, a sombra disciplinar originária permanece lá; aqui, ela já
não condiz mais como antes. De alguma maneira, a disciplina originária se torna
incapaz - ou parcial ou totalmente - de gerar compreensões acerca do contexto
atual, quando isso acontece, alguns de seus discípulos podem re-organizá-la a
partir dessa nova organização externa. Outros, por sua vez, mantêm-se fiel a
original; há, também, aqueles que dela se desfazem, indo ao encontro de outra
disciplina que se faz original nesse novo contexto. Poder-se-ia discutir o que
os levam a isso; no entanto, nesse escrito, não vem ao caso. Apenas se tenta
realizar uma compreensão de mais um motivo de divergências relacionais entre
preceptor-discípulo.
Há também a maneira pela qual o
vínculo entre o discípulo e seu preceptor é estabelecido. Esse fenômeno elucida
o preceptor presente na dinâmica disciplinar de maneira mais destacada do que
nos anteriores. A relação entre ele e seu discípulo, tendo entre eles a
disciplina em questão, é um fator que também influencia seu desenvolvimento. As
vicissitudes advindas do vínculo podem gerar conflitos os quais irão
influenciar de maneira ou positiva ou negativa a transmissão da disciplina em
questão. O que pode ocorrer é que, mesmo o vínculo sendo negativo, a disciplina
continua sendo objeto de interesse ao discípulo; dela, ele não se abstém,
pretende seguir a sombra disciplinar independente de quem a desenvolveu; no
entanto, ainda assim, nada impede de, em algum momento, também se opor a ela de
maneira ora total ou parcial, desenvolvendo outra à sua maneira.
Há duas correlações dispostas em
campos opostos que, quando em prática, destoam - por mínimo que for - a sombra
disciplinar original (advinda do preceptor): talvez não haja possibilidade de
se opor de maneira total a ela; o contrário, que seria segui-la de maneira
“pura”, também parece ser impossível. Mesmo que se tente se opor a ela de
maneira total, e esse é o ponto o qual pode ser discutido, sempre haverá alguma
influência, nem que seja um mínimo traço. Talvez em nada uma disciplina advinda
do discípulo será igual àquele que a desenvolveu, visto que este, o preceptor,
também possui sua própria personalidade e seu próprio modus operandi que lhe é único e singular.
Essa reflexão permite utilizar,
para um auxílio compreensivo, a lógica de Schopenhauer, em seu livro A Arte de
Escrever, cujo funcionamento corresponde à palavra de uma determinada língua
que, quando traduzida para outra, por mais semelhante que se torne na outra
linguagem, não é possível ser igual. Para ilustrar esse fenômeno, o filósofo
destaca que dois círculos nunca serão concêntricos, pois não conseguem
sobrepor-se. No caso da Interdisciplinaridade em Sombra Falada, a tentativa,
aqui, é tomar o círculo como sombra, a sombra falada disciplinar originária
(pertecente ao preceptor) quando em ação ao discípulo por ela subjetivado, este
a fala gerando uma sombra que não é sobreposta à sombra falada disciplinar
originária, pois não se sobrepõe a ela, nesse caso, as lógicas possuem, em
partes, divergências, apesar de haver um ponto em que se conectam, pois, ali,
há uma lógica compartilhada por ambas.
Segue desenho para ilustrar esse
fenômeno:
1)
2)
Na figura 1, a “sombra falada
disciplinar originária” (pertencente ao preceptor) é simbolizada pelo círculo
cuja sua lógica nele está que, então, é projetada ao corpo subjetivo do
sujeito. Este projeta a partir de sua ação subjetivante sua lógica em um
círculo cuja sombra reproduz de maneira análoga à originária (de seu
preceptor). Por isso, o sinal de igual, visto que as lógicas, simbolizadas como
círculos, são idênticas; por isso, quando estes círculos são desenhados abaixo,
eles se sobrepõem por completo.
Já na figura 2, a diferença é que
o sinal não é igual, pois há uma linha que interfere que a sombra disciplinar
originária seja projetada por completo no corpo subjetivo do sujeito, os
fatores como personalidade individual, o tipo de disciplina que está sendo
projetada, as modificações da realidade externa e o vínculo estabelecido
influenciam, da mesma forma como a sombra originária, na constituição
disciplinar do sujeito, este, então, projeta uma sombra parcial à original,
gerando um disciplina não idêntica a do preceptor. Por isso, os círculos que
simbolizam as lógicas do preceptor e do discípulo, nesse caso, não se sobrepõem
totalmente, como desenhado abaixo. Onde há a sobreposição parcial, pode
funcionar a interdisciplinaridade, mas é questionável, pois, nesse caso,
haveria uma interdisciplinaridade plena quando há uma sobreposição total, o que
pode não ser verdadeiro, visto que, reproduzir de maneira análoga uma disciplina
não é sinônimo de ação interdisciplinar, mas, sim, com uma ação de muito rigor
disciplinar. Sendo assim, para haver interdisciplinaridade, é necessária uma
ruptura e uma analogia que ocorrem simultaneamente em duas lógicas, como no
caso da figura 2. Por isso, nela, há um ponto interdisciplinar, porque existe,
também, uma área de ruptura, diferentemente da figura 1.
Portanto, a
interdisciplinaridade, nesse caso, parece funcionar a partir de duas áreas
contraditórias – ruptura e analogia -, mas que, de alguma forma, se
retroalimentam em um funcionamento intermitente cujo processo também pode gerar
modificações, visto que, os círculos das duas lógicas disciplinares, quando
parcialmente sobrepostos, podem, também, sofrer influências de outras
interferências externas. O quadro resultaria em uma rede de interconexões cujos
círculos estariam interligados em alguma área entre si e, nesse ponto
interdisciplinar, haveria o funcionamento de retroalimentação.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. L&PM Pocket: Porto Alegre, 2009.