quinta-feira, 27 de junho de 2019

IMPORTÂNCIA DA FILOSOFIA ENQUANTO DISCIPLINA CURRICULAR PARA O ENSINO MÉDIO

IMPORTÂNCIA DA FILOSOFIA ENQUANTO DISCIPLINA CURRICULAR PARA O ENSINO MÉDIO

A pretensão do trabalho consiste em, primeiramente, expor o argumento que visa defender a presença da Filosofia como disciplina no currículo escolar para que este tenha um planejamento pedagógico embasado pela interdisciplinaridade. A partir do argumento, será esboçado um breve panorama entre o currículo “simplista” e o que denominaremos de holista que será defendido em contraposição àquele. Para isso, será dada ênfase à natureza da Filosofia para que seja possível desenvolver o argumento de sua especificidade didática, pois esta é o que consolida o currículo holista. Uma vez compreendida a sua didática, será esboçado, assim como Rocha fizera, alguns exemplos em conformidade com o aspecto teórico de como a Filosofia interage com as disciplinas particulares do currículo
O objetivo do presente trabalho é defender a tese proposta pelo filósofo Ronai Rocha (a imagem de seu livro segue ao lado) de que o currículo escolar do ensino médio seja organizado de maneira holista por meio de princípios interdisciplinares, e não mais pelo princípio do presépio. Para isso, dado que a Filosofia possui uma didática especial, pois toca, por natureza, em temas transversais, ela é imprescindível como disciplina curricular na medida em que permite articulações interdisciplinares que favorecem o desenho universal desejado. Portanto, se defendemos um currículo harmônico de maneira em que cada disciplina esteja integrada e articulada “de forma inteligente com as demais” (p.19), então, é necessária a presença da Filosofia para estabelecer e sustentar essa dinâmica.
 A organização curricular mediante o princípio do presépio consiste no depósito de planejamentos pedagógicos, de ofertas didáticas e de elaboração de matérias que são propostos sem haver interação entre os seus atores; por isso, de acordo com Rocha, cada docente, nessa condição de solidão, cria um currículo cujo “resultado final não tem harmonia” (p. 17). Dessa maneira, ocorre uma justaposição entre as disciplinas sem haver, entre elas, qualquer meio de conexão. Segundo Rocha, esse modelo curricular fragmentado tem, como uma das causas, a própria formação dos cursos de licenciatura cuja cultura não enfoca trabalhos em equipe. Por isso, os professores, ao ingressarem no mercado de trabalho, transmitem as informações contidas nas listas dos conteúdos de sua disciplina sem buscar desenvolver, necessariamente, interações e planejamentos interdisciplinares.
Esse modelo curricular cujos conteúdos se restringem a uma lista previamente elaborada e transmitida de acordo com gostos pessoais de cada docente advém de uma “concepção logocêntrica do ensino” (p. 81) e se assemelha ao princípio do presépio na medida em que também deixa “pouco espaço para a criatividade em sua execução” (p. 92). Ao ficarem restritos ao planejamento de ensino que é individualmente elaborado, os professores não buscam desenvolver métodos didáticos que envolvam conceitos e temas transversais que estão contidos nas diferentes disciplinas. Dessa maneira, conforme Rocha, há uma simplificação do ensino e as reuniões são momentos apenas para tomar um cafezinho. A repercussão de um “currículo simplista” como esse gera nos alunos uma condição passiva frente às informações transmitidas, pois o plano de ensino não inclui a lógica de sua aprendizagem, ou seja, não elenca o modo de como cada um se apropria do conteúdo e, quanto à didática, esta não desenvolve passagens para transitar entre as disciplinas.
O modelo alternativo de currículo, que tem como objetivo integrar as diferentes disciplinas por meio de um método que desenvolva a interação entre seus conteúdos, é o holista. Ele está embasado por princípios interdisciplinares e, conforme Rocha, a instituição escolar que o adota como meio didático fornece uma harmonia curricular de maneira que os alunos possam preencher as lacunas de sua aprendizagem. Segundo o filósofo, ainda que o currículo que omita a dinâmica interdisciplinar não cause repercussões negativas para a aprendizagem dos estudantes, estes acabam ficando sem um espaço para abordar e estudar “conceitos fundamentais da experiência humana”. Além disso, o currículo holista “visa a formação de um ser humano que está sempre em busca de sentido e graça, e poucas coisas são mais desprovidas de sentido e graça do que um currículo fragmentado e sem vasos comunicantes” (p. 111). Tal proposta significa que a interação entre as disciplinas a partir de didáticas sustentadas por princípios interdisciplinares fornece um meio favorável de compreensão dos conteúdos na medida em que envolve as especificidades do processo de aprendizagem de cada aluno, assim, este pode dar um sentido ao que lhe é ensinado e desenvolver uma distância necessária para interrogar o mundo e a si mesmo.
As Orientações Curriculares do Ensino Médio (OCEM) também sustentam a importância de as escolas desenvolverem planejamentos pedagógicos embasados pela parceria e interação entre os professores para que haja uma coesão no corpo docente e no currículo. “O grande avanço [...] consiste na possibilidade objetiva de pensar a escola a partir de sua própria realidade, privilegiando o trabalho coletivo” (p. 7). As Orientações Curriculares incluem ainda, como um dos componentes do currículo que denominamos de holista, a “integração e articulação dos conhecimentos em processo permanente de interdisciplinaridade e contextualização” (p.7). Esse modelo curricular, conforme Rocha, também auxilia as escolas na medida em que desacelera a máquina da burocratização.
  Para integrar os trabalhos curriculares a partir da interlocução entre as disciplinas, não somente atitudes e hábitos que visam a cooperatividade são importantes, mas, também, dois aspectos que são inerentes para um currículo holista, a saber, 1) o modo de como a natureza do conhecimento humano é concebida e 2) o dispositivo metodológico adotado para desenvolver interfaces conceituais (ROCHA). Quanto ao primeiro, a proposta de um currículo embasado pela dinâmica interdisciplinar depende do modo de como concebemos a natureza do conhecimento humano. Conforme Rocha, “um lugar comum nos estudos curriculares consiste em lembrar que aquilo que pensamos sobre a natureza do conhecimento humano tem relevância para nossas decisões no campo de elaboração de currículos” (p. 28). Esse tópico que relaciona a interdisciplinaridade ao âmbito epistemológico para, de acordo com Rocha, viabilizar a elaboração de um currículo holista não será tratado nesse trabalho, para isso, indica-se o artigo de Olga Pombo (2008) – “Epistemologia da Interdisciplinaridade” – que tem esse tema como enfoque.
Em relação ao dispositivo metodológico para haver o desenvolvimento de interfaces conceituais com intuito de promover a interação entre as disciplinas, é imprescindível, de acordo com Rocha, a inclusão da Filosofia como disciplina curricular. Conforme o filósofo:
Diante da tradição secular que a Filosofia traz consigo, como uma disciplina que quer pensar a totalidade dos objetos ou avaliar a justeza das ações, não podemos deixar de ver que os estudos curriculares em Filosofia tem ao menos uma característica muito especial: precisamos dizer como vemos as relações da Filosofia com as demais disciplinas; precisamos também especificar como se concretizam essas relações no cotidiano do ensino” (p. 19).

            A Filosofia propicia a interação disciplinar em função de sua natureza: “O professor de Filosofia não pode contribuir ainda mais para o alheamento entre as disciplinas. Essa exigência decorre da própria natureza da Filosofia” (p. 111). Dada a sua peculiaridade de desenvolver o alheamento entre as diferentes áreas do saber, a Filosofia, como disciplina, deve, portanto, “valorizar as demais disciplinas e atividades escolares” (p. 111). Para ilustrar esse aspecto de interação curricular que é próprio da Filosofia, Rocha cita em seu texto a concepção aristotélica que a designa como sendo a “ciência que estuda o ser enquanto ser e as propriedades que lhe competem enquanto tal. Ela não se identifica com nenhuma das ciências particulares”. Ou seja, a Filosofia difere das demais disciplinas na medida em que não visa estudar fragmentos da realidade, mas a sua totalidade, isso significa “que ela procura pensar sob o ponto de vista mais geral possível” (Rocha, p. 70). Portanto, a Filosofia ao tocar em assuntos e temas que transitam nas ciências particulares porque, como visto, tem como objetivo estudar a realidade como um todo, possui a peculiaridade de formar “pontos de contato que permitem a elaboração de um desenho curricular hormônico e integrado” (p. 22).
            Sendo assim, a defesa para a presença da Filosofia no currículo escolar tem, como intuito, propiciar retorno positivo às demandas intrínsecas e inerentes ao processo de ensino-aprendizagem dos estudantes de acordo com as suas curiosidades mais básicas sobre suas experiências de vida (Rocha). Isso se justifica porque “se essas curiosidades não forem acolhidas na aula de Filosofia elas ficam sem tratamento no ambiente escolar” (p. 33). Dessa maneira, sem a Filosofia, não haveria um espaço destinado exclusivamente para a reflexão sobre conceitos que são a base para a constituição de um currículo coeso e complexo. Uma vez destituídas as lacunas do currículo, o processo de ensino aprendizagem dos estudantes é enriquecida (Rocha).
Por isso, se buscamos um currículo holista, é necessária a presença da Filosofia como disciplina escolar por duas razões, a saber, 1) sua didática propicia a integração curricular (ROCHA) e 2) em função de sua didática, sua presença nas instituições escolares fomenta, conforme o que pretende as Orientações Curriculares, a elaboração de projetos pedagógicos de maneira cooperativa e integrada.  Quanto à segunda razão, as demais disciplinas não estão isentas de criar métodos que tenham como objetivo estabelecer canais comunicativos no currículo escolar. Conforme Rocha “As iniciativas nessa direção podem e devem ser tomadas por todas as áreas do conhecimento representados nos cursos de formação de professores” (p. 22), ou seja, os cursos de licenciatura têm o compromisso de desenvolver um currículo holista. Entretanto, a Filosofia, em função de possuir uma natureza que a difere das demais disciplinas (como visto no parágrafo anterior), possui uma didática que lhe é única, a saber, estabelecer a relação entre as diferentes disciplinas particulares a partir de conceitos que nelas transitam, mas que não são, nelas, devidamente estudados uma vez que não são questionados e nem colocados em um espaço de reflexão (ROCHA).  Por isso, a primeira razão se justifica porque a Filosofia possui, conforme Rocha, uma didática especial.
 O argumento referente à didática da Filosofia segue de acordo com a sua natureza. As disciplinas, de acordo com as Orientações Curriculares, são um recorte de uma dada área do conhecimento, sendo assim, cada disciplina particular tem, como enfoque de estudo, uma parte da realidade. A Filosofia, por sua vez, é uma disciplina que estuda a realidade como um todo, então, ela não é um recorte, mas uma “costura” entre as áreas do conhecimento visando, como dito anteriormente, uma abertura que instiga o estudante a ampliar a sua visão sobre o mundo e a si mesmo. Dessa forma, de acordo com Rocha, “todas as áreas do currículo escolar podem ser abordadas com os instrumentos conceituais da Filosofia” (p. 22). Portanto, a Filosofia, em função de sua natureza, é uma disciplina que tem uma especificidade que a diferencia das demais; por isso, possui uma didática que Rocha nomeia como sendo especial, pois ela visa integrar os fragmentos a partir dos conceitos pertencentes às disciplinas particulares de maneira a conferir ao currículo uma unidade. Dessa forma, a sua didática visa uma “estratégia de trabalho que vá além dos limites de cada disciplina em particular” (p. 23).
            Para a Filosofia empregar a sua didática visando a integração das disciplinas, é necessário, para isso, ter, como objeto de seu estudo, segundo Rocha, os conceitos transversais, pois são estes que fornecem caminhos para o estudante transitar no mundo como um todo. Portanto, defendemos uma “transversalidade pedestre” e para isso precisamos “falar aqui em dominar conceitos” (p.30). Conforme consta nas Orientações Curriculares, “a Filosofia é teoria, visão crítica, trabalho do conceito, deve ser preservada como tal” (p. 35) – O grifo é meu. Ainda de acordo com as Orientações Curriculares, a Filosofia tem, como natureza, propiciar a reflexão acerca de conceitos pertencentes ao cotidiano a partir do questionamento de seus significados para que seja possível a conscientização desses conceitos. Estes são designados por Rocha como sendo aqueles pertencentes à experiência comum dos sujeitos; por isso, a Filosofia possui uma “natureza reflexiva” (p. 22). Por fim, as Orientações também referem que o objetivo da Filosofia no Ensino Médio é fazer com que os estudantes possam se posicionar “diante dos conhecimentos que lhe são apresentados, estabelecendo uma ativa relação com eles e não somente apreendendo conteúdos” (p. 28). A peculiaridade da didática da Filosofia é trabalhar com conceitos para que sejam dominados pelo aluno a partir de um exercício ativo do pensamento.
Portanto, a Filosofia, de acordo com Rocha, como disciplina curricular do ensino médio, tem a tarefa de mapear esses conceitos que transitam entre as diferentes disciplinas e que são da experiência comum para desenvolver questionamentos e reflexões que façam com que os estudantes possam ampliar a sua compreensão do mundo possuindo um papel ativo nesse processo. São “conceitos fundamentais da experiência humana” que, quando questionados e trabalhados na disciplina de Filosofia, podem suscitar respostas que “comportam sempre uma abertura, pois dizem respeito ao modo como lidamos com as nossas convenções mais profundas” (p.35). Ou seja, o objetivo didático da Filosofia é a criação, no currículo, de “um espaço para enriquecer a experiência do aluno com aqueles conceitos que desempenham papel importante em muitas disciplinas particulares e que não são tratados por nenhuma disciplina particular” (p. 34). Por exemplo, abstrato é um conceito pertencente à matemática (números abstratos) e também ao português (sujeito abstrato); a questão é: o que é “abstrato”? O espaço para responder esse tipo de pergunta ocorre na disciplina de Filosofia, esta é o ponto de encontro das diferentes disciplinas (nesse caso, entre Português e Matemática) quando se busca compreender os conceitos que transitam entre elas. Movimento é um conceito visto na física (Movimento Retilíneo Uniforme – MRU), mas também é visto na história (História dos Movimentos Sociais) assim como, também, na geografia, como o movimento dos astros (movimento de rotação da Terra). Além disso, a Biologia estuda o movimento dos seres vivos e, quanto aqueles que despendem toda a sua vida sem se locomoverem (seres fixos), ainda assim possuem movimento na medida em que suas células se movem. Ainda podemos inserir o conceito de movimento na literatura (movimento dadaísta, cubista e etc). Ora, mas o que é movimento? O movimento é dado por um Primeiro Motor Imóvel como vemos na tradição metafísica (ou seja, ele advém de uma força externa), ou ele é dado pela própria matéria que constitui cada coisa de acordo com o seu conteúdo como vemos na tradição do materialismo dialético (ou seja, o movimento advém de uma força interna)? Ainda há aquele, como Zenão, que argumentou que o movimento não existe.
O aluno, conforme Rocha, “poderá ter suas experiências de aprendizado enriquecidas se o currículo lhe oferecer este espaço de razões e argumentos sobre conceitos fundamentais da experiência humana” (p.34). Pois, como visto, são esses conceitos que fornecem a integração entre as disciplinas; no exemplo dado, houve a integração de quatro disciplinas particulares a partir da “mudança de posicionamento do conceito”. Ou seja, para enriquecer a experiência de aprendizado, “precisamos compreender os mecanismos que mostram que o conceito que desempenha um papel operatório em um caso passa a ter um lugar de conceito objeto em outro” (p. 111). Então, de um conceito que é tido como operacional na medida em que a curiosidade sobre ele é despertada sobre os aspectos particulares da realidade, ou seja, o conceito de movimento opera de um modo no MRU e de outro modo nos Movimentos Sociais, o conceito muda de perspectiva no momento em que suspendemos os nossos juízos (conforme Chauí citada por Rocha), pois podemos questioná-lo a partir de uma curiosidade sobre o conceito relacionado a ele mesmo, dessa forma, ele passa a ser o objeto de estudo advindo de uma curiosidade sobre todas essas curiosidades particulares. O que é movimento? Por que ele existe? Ou ele não existe? Se existe, qual é a fonte que ocasiona o movimento? Ela advém de uma força externa à matéria ou é interna a ela? Pode haver movimento naquilo que está fixo? O movimento, portanto, é pensado em tudo o que se move e não ficando restrito aos astros, aos seres vivos e etc. É por isso que a Filosofia, conforme Rocha, exercita o desenvolvimento de “habilidades metaconceituais” que surgem a partir de nossas curiosidades sobre as coisas mais comuns que ocorrem em nossas vidas que nem sequer paramos para interrogá-las. É o exercício de colocar o mundo em suspensão diante da razão argumentativa.
Por isso, Rocha confere à Filosofia a disciplina que possui “as curiosidades sobre todas essas curiosidades” (p. 32). O modo de como compreendo essa forma de conceber a Filosofia se dá em função de que ela excede os recortes feitos pelas disciplinas particulares, ou seja, a sua proposta didática é tomar o conceito de maneira mais geral possível (conceito como objeto) e não implicado em aspectos particulares do mundo (conceito como operação em cada fenômeno específico como no exemplo do movimento visto acima). As disciplinas particulares enfocam justamente os aspectos particulares (por isso, são um recorte da realidade), enquanto a Filosofia, por sua vez, enfoca a realidade como um todo (essa é a sua natureza). Nas disciplinas particulares, portanto, a curiosidade advém de uma tentativa de compreender o conceito operando em cada caso particular; na Filosofia, a curiosidade advém de compreender o conceito envolvido no mundo como um todo, ou seja, excedendo cada aspecto particular da realidade. Por isso, a Filosofia é uma curiosidade do conceito no mundo como um todo, engloba cada caso particular em que ele opera, em outras palavras, é a curiosidade sobre todas as curiosidades.
Para a mudança do estatuto do conceito, é importante o tipo de pergunta feita. São perguntas que, como visto, excedem as disciplinas particulares na medida em que visam “colocar o mundo diante de nossas capacidades de argumentação” (Rocha, p. 35) e as respostas dadas pela Filosofia se referem ao modo de como cada um lida com suas “concepções mais profundas” (p. 35). É por isso que a disciplina de Filosofia trabalha com conceitos que são pensados não apenas pela lógica do conteúdo da disciplina, mas, também, pelo envolvimento dos esquemas conceituais de cada aluno, ou seja, há uma interação entre o conceito trabalhado com o modo de como cada estudante se envolve com ele a partir de seu próprio modo de pensar (conforme a Lógica de Conteúdo e de Aprendizagem de Kant mencionadas por Rocha). “Cada um terá modos especialíssimos de achegar-se” (ROCHA) aos conceitos. Portanto, um trabalho destes permite uma forma de revermos o modo de como pensamos sobre os aspectos básicos de nossa realidade. É uma suspensão para questionar a si mesmo.

terça-feira, 25 de junho de 2019

Breve argumento do Monismo Anômalo sobre o Estatuto Científico da Psicologia

O problema do estatuto científico da Psicologia é muito bem desenvolvido na filosofia de Donald Davidson cuja tese é conhecida como Monismo Anômalo.

O monismo anômalo é uma teoria sobre o status científico da Psicologia, o estado físico dos eventos mentais e a relação entre esses temas desenvolvida por Donald Davidson. A tese alega que a psicologia não pode ser uma ciência como a física na medida em que não pode, em princípio, produzir leis sem exceções para prever ou explicar pensamentos e ações humanas (anomalismo mental). Também sustenta que pensamentos e ações devem ser físicos (monismo, ou identity-token). Assim, de acordo com o monismo anômalo, a psicologia não pode ser reduzida à física, mas deve, não obstante, compartilhar uma ontologia física.

A Psicologia parece ter buscado reduzir seus dados empíricos em dados estatísticos, mas, ainda assim, estes não superam a física para desenvolver uma lei como demonstra o argumento seguinte:

Problema da psicologia enquanto ciência segundo David Davidson.

Física:
p1) S -> P
p2) S
c) P

Psicologia:
p1) S -> P / Q / R
p2) S
c) P? / Q? / R?

Ou seja, diferentemente da física, a psicologia não garante que se S então necessariamente P.

https://plato.stanford.edu/entries/anomalous-monism/?fbclid=IwAR1IOE8R48H3_4vOSDclRQVve5lH6rdI1Cwx4U41DX9DILHG0m2ilUfKCNM

Livro Filosofia da Mente - Walter Menon

Mais um livro para estudar com profundidade.

Menon sustenta a tese de que a mente tem, necessariamente, corpo; e que a mente não é constituída de corpo.

Primeira questão surge: Como algo A pode ter X e não ser constituído de X?
Essa é fácil. Esta água que estou tomando tem gás, mas a Água é constituída de moléculas de H2O.

A questão, aí sim, é: se mentes tem corpo e não são constituídas de corpo, são constituídas ou exclusivamente por ente(s) não-corpóreo(s) ou, em parte, por ente(s) não-corpóreo(s)? Ora, se aceitarmos a primeira opção, não vejo como respondê-la sem sair do dualismo cartesiano; se a segunda, estaríamos em algum tipo de dualismo? Em outras palavras, qual o comprometimento não só ontológico dessa tese, mas, também, epistemológico e semântico?

Se uma pessoa p se refere a si indicando não uma parte de seu corpo, mas relatando algum estado mental seu, não se segue, necessariamente, que ela não tenha corpo, pois pode indicar uma parte de seu corpo e, ao mesmo tempo, referir algum estado mental relacionado. Todavia, segue-se, necessariamente, que o que ela aponta enquanto parte de seu corpo não seja algo que constitui seu estado mental.

E agora? Agora é tirar tempo para estudar! 🤪

https://jornalggn.com.br/nao-ficcao/lista-de-livros-filosofia-da-mente-de-walter-menon%EF%BB%BF/

segunda-feira, 24 de junho de 2019

ANÁLISE DE CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS NA NOÇÃO DE JUSTIÇA ENQUANTO VIRTUDE MORAL EM ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO

INTRODUÇÃO
    Tomás de Aquino aborda sobre o tema da Justiça na Suma Teológica (questão 58) investigando sobre doze aspectos relacionados a ela. Estes estão distribuídos em artigos que visam questionar o conceito de justiça, a maneira pela qual ela opera no caráter humano e nas relações interpessoais, a sua fonte e o seu objeto e entre outros fatores. Para isso, em cada artigo, Aquinas introduz uma pergunta seguida de uma resposta, por exemplo: pergunta “A justiça é uma virtude?”; resposta: “parece que não”. A partir disso, Aquinas insere argumentos (normalmente três), advindos de teóricos (como filósofos, teólogos e juristas), que corroboram com a resposta. Após isso, ele insere um breve trecho ou de algum teórico ou de alguma fonte que argumenta de maneira contrária aos argumentos dos teóricos (sed contra). A partir disso, Aquinas desenvolve uma resposta (respondeo) que ele sustenta como sendo ou correta ou adequada à pergunta feita e, por fim, ou refuta ou explica de modo a corrigir cada teórico que argumentou corroborando com a resposta da pergunta introduzida.
    Esta estrutura fundamenta o modo pelo qual Aquinas discute o tema da justiça. A discussão ocorre através de teorias desenvolvidas por Aristóteles, Santo Agostinho, Isidoro, Ambrósio, Cícero e entre outros. A Bíblia também é utilizada. Dentre as diversas fontes para abordar a temática da justiça, destaca-se o Livro V da Ética a Nicômaco de Aristóteles (citado por Tomás como O Filósofo) que possui significativa influência tanto para a noção de justiça em Aquinas como, também, para “toda a Filosofia jurídica da Idade Média” (CRASNIEVICZ, 1998, p. ).
    A Ética a Nicômaco se tornou importante para o desenvolvimento do pensamento tomista sobre a Justiça em função de que este tema foi escasso nos escritos dos escolásticos que precederam Aquinas (CRASNIEVICZ, 1998). Pode-se observar que em todos os artigos sobre a justiça Aristóteles é citado por Aquinas, isso, ao que tudo indica, demonstra a justiça aristotélica como apoio de sustentação para Tomás de Aquino desenvolver a sua noção de justiça. Por isso, conforme nota de Carlos-Josaphat na Suma Teológica (Editora Loyola), o Filósofo foi o centro para o desenvolvimento da questão da justiça tomista enquanto os demais teóricos (juristas, filósofos e teólogos) circulam em torno desse “eixo aristotélico”. A questão é que Aristóteles ser o centro de sustentação no qual Tomás de Aquino desenvolve a sua noção de justiça não significa que este concorde totalmente com o Filósofo (CRASNIEVICZ, 1998).    

PROBLEMA DO ESTUDO COMPARATIVO ENTRE A NOÇÃO DE VIRTUDE MORAL E DEVER EM TOMÁS DE AQUINO E ARISTÓTELES E A REPERCUSSÃO PARA A NOÇÃO DE JUSTIÇA

O que pode haver é que a noção de Justiça em Aquinas tenha diferenças quando comparada com a noção de Aristóteles.  A análise de concordâncias e discordâncias, bem como de aproximações e distanciamentos acerca de um determinado tema entre dois filósofos situados em períodos distintos pode ser realizada a partir do estudo comparativo (IRWIN, 2009). A comparação entre os dois pensadores pode ser feita enfocando as variáveis que perpassam a condição de cada um. Por exemplo, Aristóteles está inserido em um contexto cultural diferente de Aquinas e isso pode influenciar em seus propósitos de escrita gerando divergências quanto à sua concepção de justiça. Aquinas tem como objetivo relacionar a noção de justiça com a teologia em função de o cristianismo fazer parte de sua formação; enquanto Aristóteles parece estar indo contra a noção de Sumo Bem (incluído nele a justiça) de Platão mesmo que isso acarrete o fim de uma amizade, como menciona em EN I-6. Além disso, pode-se questionar: será que Aquinas poderia ter enfrentado algum conflito ao tentar uma integração entre Aristóteles e a Sagrada Escritura? (CRASNIEVICZ, 1998). Além disso, como as fontes tomistas não ficam restritas à aristotélica, será que em algum artigo Tomás discorda de Aristóteles para corroborar com outro teórico? E se, ao concordar com Aristóteles, tiver que discordar de um teólogo cristão, Aquinas não estaria se opondo à tradição na qual está incluído? Esses questionamentos são inseridos com intuito de demonstrar que divergências e convergências de ideias não ficam restritas ao âmbito pessoal, pois elas repercutem também no contexto cultural em que Aquinas está situado. Outro sinal dessa repercussão é o texto bíblico que ganha, a partir da retomada aristotélica por Aquino, um caráter filosófico (CRASNIEVICZ, 1998). De alguma forma, isso influencia no modo de como a Bíblia é lida.
O estudo da filósofa Anscombe (1958) parece tomar uma posição radical, pois, conforme ela, os conceitos cristãos como dever, dever moral e moral deveriam ser deixados de lado em função de que eles não correspondem com os da noção aristotélica:
The concepts of obligation, and duty – moral obligation and moral duty, that is to say – and of what is morally right and wrong, and of the moral sense of “ought”, ought to be jettisoned if this is psychologically possible; because the are survivals, or derivatives from survivals, from an earlier conception of ethics which no longer generally survives, and are only harmful without it (p. 1).

Segundo ela, essa diferença de noção desses conceitos se deve por causa do cristianismo, este modificou o sentido de dever moral e da própria moral em comparação ao sentido antigo, fator que implicou mudanças na maneira de conceber a justiça na medida em que esta é uma virtude moral. Portanto, para Anscombe, a noção de moral tomista não deve se embasar pela noção antiga, pois são divergentes. A questão é que, conforme Irwin (2009), se Anscombe estiver correta, então, Aquinas está “contra a visão aristotélica” (p. 300), tratando “a moralidade como um produto da legislação de um legislador divino” (p. 300). Pretendo, a seguir, frente a esse problema comparativo exposto, defender que Tomás não está indo contra ao tratado moral de Aristóteles; que o dever moral e as virtudes morais não são regidos por uma legislação externa (ainda que esta possa ter, em parte, uma influência sobre as virtudes morais), mas pelo ato deliberativo do homem de acordo com a razão. Posteriormente, tentarei desenvolver a implicação dessa defesa para a noção de justiça em Tomás de Aquino e Aristóteles. Por fim, pretendo demonstrar que há em Aquinas uma inovação na noção de uma justiça que não há em Aristóteles, a saber, a justiça referente aos preceitos do decálogo que parece indicar uma noção de uma legislação divina (q. 122 a. 1). Entretanto isso não significa que esteja ou se opondo ou se distanciando do Filósofo de maneira que a noção de moralidade deve ser abandonada, pois esta noção de justiça de Aquinas, ainda que diferencie Tomás de Aquinas de Aristóteles, não é motivo para rompimento.
A diferença proposta por Anscombe (1958) é no sentido de que o dever cristão é concebido como sendo um dever moral, algo que deve ser feito em função da lei natural, uma obrigatoriedade humana perante Deus. Esta noção influencia no período moderno e contemporâneo, repercutindo na maneira como lidamos com a legislação. Aristóteles, por sua vez, segundo a filósofa, não concebe o dever como sendo moral, mas como relativo ou ao bom ou ao mau. Pelo que entendi, Anscombe parece compreender o dever no sentido aristotélico como é descrito em EN II-1 e 2 em que há um dever do humano em relação às suas virtudes, a saber, estas devem ser postas em ato frente às situações e, ao se obter um resultado, é possível investigar a qualidade da conduta. Escrito de outra forma, o dever moral, no contexto aristotélico, seria nosso dever, enquanto humanos, de colocar em ato as virtudes em potência para que haja o desenvolvimento do hábito cujo processo ocorre por meio da constituição, destruição e conservação das qualidades morais (EN II -1 e 2). Nesse caso, essa noção de dever moral, segundo Anscombe, não tem relação com uma legislação, mas com a própria condição inerente à natureza humana que é a manifestação de atos cujas demonstrações indicam se eles são ou bons ou maus.
    No artigo de Charles Pigden (1988), que tem como objetivo analisar a tese de Anscombe, parece ficar mais claro a pretensão da filósofa. A sua interpretação parece indicar que o modelo moral aristotélico enfoca, para Anscombe, na Ética a Nicômaco, as virtudes morais as relacionando ao hábito pessoal de cada sujeito sem vinculação com alguma legislação que regule as qualidades morais no sentido de influenciar na constituição, destruição e conservação das virtudes. O propósito de Aristóteles, em Ética a Nicômaco, parece estar mais relacionado com o dever do sujeito investigar a sua própria conduta de maneira a reprimir os atos maus e manifestar os atos bons. Para isso, o sujeito deve cuidar da qualidade de suas atividades para acertar na justa medida até encontrar o modo pelo qual desempenhe bem a sua ação (EN II-4). Tomás de Aquino, em contrapartida, conforme a filósofa, possui uma noção de dever que difere da aristotélica na medida em que Aquinas concebe uma lei natural regulada e controlada por uma legislação de ordem divina e, também, externa que influencia na constituição bem como na destruição e conservação das virtudes morais.
Segundo Pigden (1988), Aquinas parece estabelecer valores cristãos com objetivo de que sejam instituídos de acordo com uma legislação divina. Nesse caso, Anscombe parece defender que a ideia de Aquinas é incluir a vontade de Deus no processo de constituição da disposição de caráter do humano; por isso, há uma obrigação moral em agir de um modo e não de outro. Este é o modo pelo qual Pigden interpretou: “When a believer said or thought that X ought to be done, he must have meant (at least in part) that X was willed or commanded by God” (p.). Ou seja, Anscombe, ao que parece indicar, sustenta que a noção de virtude moral cristã depende menos da disposição de caráter interno do humano com ele próprio do que da vontade de Deus sobre o caráter humano. Esse comando eterno divino, ao que parece indicar, destitui o agente no sentido de que o ato, em função de estar submetido a uma ordem divina, penderia mais para uma involuntariedade do que voluntariedade. Nesse caso, a deliberação, que precede a ação voluntária e que envolve um processo de raciocínio para atingir a mediania das virtudes morais, estaria consoante com os valores cristãos que comandam o que se escolhe fazer; o hábito, por sua vez, seria uma mediação entre os valores cristãos e os atos.
Se fosse traçar um modelo para ilustrar a diferença que está sendo proposta por Anscombe, elaboraria, a partir de Aristóteles (EN II-1 e 2), o seguinte: (Disposição Moral: Hábito 🡪 Ato = Virtude ou Boa ou Má). Ou seja, a disposição moral ocorre por meio do hábito que é manifestado pelo ato de acordo com a razão e é esse processo a maneira da virtude ser manifestada de acordo com uma qualidade moral (ou é constituída, ou destruída ou conservada por meio desse processo). Um modelo para Aquinas, também de acordo com o que parece estar sendo proposto pela filósofa, seguiria assim: (Disposição Moral: Valores 🡪 Hábito 🡪 Ato = Virtude obrigatoriamente Boa). Nesse caso, o hábito passaria a ser uma ponte entre os valores cristãos e os atos desses valores de acordo com Deus e esse processo seria, portanto, a manifestação de uma virtude que deve ser boa, pois sua disposição moral está de acordo com os valores cristãos. Portanto, se assim for, a noção de dever moral de Tomas de Aquino difere da proposta por Aristóteles, sendo que isso repercute na noção de virtude moral, incluindo a justiça, entre os dois pensadores.
    Também ressaltaria que poderia haver um ponto para ser introduzido para discussão a respeito da existência de uma legislação divina conforme Anscombe menciona. Se a legislação divina é uma lei eterna que é regida pela vontade de Deus que comanda os atos virtuosos do homem, e essa legislação divina é de acordo com os valores cristãos, o homem, portanto, ao ter uma participação com a lei natural, teria um ato eterno no que diz respeito às qualidades das virtudes. Ato eterno não no sentido de permanecer em ato puro assim como Deus, pois a concepção antropológica de Aquinas (que homem é alma e matéria) impede o humano a isso (ser ato puro), mas no sentido de que as virtudes humanas, uma vez que são guiadas por Deus, sempre acertariam o alvo da justa medida (pois são obrigatoriamente boas), isso faria com que 1) ou a ação humana não necessitaria da deliberação na medida em que o controle não é do homem consigo mesmo, mas de Deus para com o homem 2) ou a deliberação, ainda que necessária para as ações humanas, sempre estaria consoante com os valores cristãos e, por isso, o fim humano nunca resultaria em uma deficiência ou excesso.
    Para abordar o ponto 1 e 2, o estudo requer análise acerca da deliberação em relação à legislação divina proposta por Aquinas, pois como Anscombe e, posteriormente, pela interpretação de Pigden, essa legislação tem, como essência, a divindade e esta é dita de três modos, a saber, eterna, externa e ato puro. Cabe considerá-la também como dita de fim último (quarto modo) no sentido de que o divino possui uma finalidade, pois, como ato puro, Deus e o que dEle advém, é o fim para onde o homem tende (visão beatifica). O humano, por sua vez, como está abaixo de Deus, possuindo matéria, tem a potência para se dirigir ao fim advindo de Deus, mas pode “se desviar” do caminho reto (esse é o sentido da moralidade em Aquinas na Parte II da Suma Teológica). Por isso, quando Pigden menciona “When a believer said or thought that X ought to be done, he must have meant (at least in part) that X was willed or commanded by God”, o dever moral é o fim, pois é desejado (willes) e comandado (commanded) por Deus; entretanto, isso não significa que os meios de deliberação envolvidos na busca por esse fim último é desejado e comandado por Deus, pois pertence à razão humana. Ou seja, aquilo que deve ser feito (X enquanto dever moral) é externo, eterno e ato puro, pois advém de Deus e é o fim último da ação humana; no entanto, aquilo que ou pode ou não ser feito frente àquilo que deve ser feito é interno, não eterno e constituído de ato e potência (por isso, não é ato puro), pois advém do homem a partir do princípio racional e não é fim último, mas são meios para fins. Fim no plural, pois indica que o fim humano pode ser aquele que é desejado e comandado por Deus ou pode ser fins que não correspondem à legislação divina.
É importante a interpretação de Pigden porque, ao demonstrar que não é a razão humana que Deus comanda e deseja, mas um fim X que ou pode ou não ser feito enquanto um dever do agente humano, sua proposta 1) mantém a deliberação como sendo necessária à disposição moral e 2) destaca que a razão é comandada e desejada pelo humano consigo próprio e não por Deus. Isso significa que, por mais que haja, em Aquinas, uma legislação divina que deve ser obedecida enquanto um dever moral, conforme a proposta de Anscombe, a deliberação, seguindo o que propõe Pigden, está sobre o controle humano e diz respeito a meios para alcançar um fim, noção que é semelhante à de Aristóteles em EN 3-III acerca da deliberação. E esta interpretação de Pigden parece estar correta, pois, Aquinas refere que a lei é proveniente da razão humana. Portanto, é esta (razão) que leva a um fim; a lei, por sua vez, é uma maneira de medir a razão humana que é manifestada pelos atos e, assim, é possível avaliar a disposição de caráter de um sujeito (q.90, a.1). Esta noção de Aquinas é semelhante à de Aristóteles, pois ele utiliza o Filósofo como referência para desenvolver essa noção da lei (q.90. a.1). Sendo assim, 1 e 2 expostos acima neste parágrafo são contrários ao 1 e 2 mencionados anteriormente, pois a deliberação é necessária para a escolha humana frente ao fim que visa (EN 3-III) e a razão é comandada e deseja pelo humano consigo próprio e não por Deus (q. 90, a.1).
O princípio racional pertence à deliberação, pois as virtudes morais, incluindo a justiça, são colocadas em ato por meio da razão humana. Conforme Aristóteles, antes de abordar a análise das virtudes no Livro 2, ao desenvolver as premissas que levam à conclusão sobre o bem humano (EN I-7), refere que o que diferencia o homem dos demais seres é o princípio racional que coloca em ato as virtudes da alma e aprimora suas qualidades. No final do Livro I, destaca que a razão se sobrepõe aos desejos e ela é que está relacionada tanto com a deliberação quanto com a escolha, pois estas duas fazem parte do ato virtuoso, pois, conforme Aristóteles, elas envolvem a necessidade do raciocínio em função de que elas fazem parte da ação voluntária da alma. Essa noção de virtude enquanto regida pelo princípio racional do homem (e não por uma legislação externa) é corroborada por Tomás de Aquino (q. 59, a. 1). Ele mesmo vai citar diretamente Aristóteles para sustentar que as virtudes morais não são paixões: “não pode a virtude moral ser paixão” (p. 140) e destaca três motivos para isso. A virtude moral é movida pelo princípio racional em função de que 1) não pertence ao apetite sensível; 2) possui uma distinção entre bem x mal – as paixões não possuem a qualidade de bom ou mau - e 3) o movimento da razão difere da paixão, esta é guiada pelo apetite sensível enquanto aquela pelo próprio princípio racional. Segue-se, portanto, que o que rege o dever e as virtudes morais é a ação voluntária do homem, pois a origem está no agente e depende da própria ação humana. Não é uma legislação externa que vai desempenhar esse papel de regência.
    O que vale destacar ainda é que na frase de Pigden (),“When a believer said or thought that X ought to be done, he must have meant (at least in part) that X was willed or commanded by God”, aquilo que deve ser feito é, ao menos em parte (at least in part), desejado e comandado por Deus; outra parte, portanto, caberia ao próprio homem. Isso reforça a noção de que a virtude moral visa, a partir do processo de deliberação, agir a um determinado dever a partir da disposição do próprio humano e não a partir de uma legislação. Conforme Hardie (2010), a deliberação consiste em, primeiro, conceber um fim para, segundo, a partir da concepção do fim, identificar os meios possíveis a alcançá-lo. Terceiro, agir de acordo com um processo de decisão e de escolha, pois o sujeito terá que decidir quais os meios são viáveis para alcançar o fim e, se houver apenas um meio, como alcançar o fim por meio deste (HARDIE, 2010). Tendo colocado em ato o planejamento, o sujeito, então, alcançará o fim que já havia concebido, ou seja, há uma inversão da ordem causal, pois o fim já estava estabelecido anteriormente (HARDIE, 2010).
    Portanto, as considerações acima sobre o dever e as virtudes morais sustentam que estes não são regidos por uma legislação externa, mas pelo ato deliberativo do homem de acordo com a razão, sendo que isto está tanto em Aristóteles quanto em Aquinas. Por isso, concordo parcialmente com Irwin:
Se essa for a maneira correta de ler Tomás de Aquino, sua posição vai contra a reivindicação de Anscombe sobre as exigências morais e a legislação. Para ele, o aspecto legal da moralidade simplesmente consiste no fato de que os princípios morais são princípios racionais, do tipo descoberto pela deliberação aristotélica, que guiam a ação (2009, p. 301).

    Parcialmente porque ainda que a legislação não seja o ato deliberativo e nem faça parte de seu processo, ela influencia nos resultados, ou seja, no fim e não nos meios, pois o fim concebido, quando alcançado, pode ser retificado por uma legislação, e isto pode fazer com que haja alguma mudança no hábito humano como maneira de corrigir um vício. Esta noção de uma legislação retificando o fim humano está presente em Aristóteles em EN I – 2 “a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos fazer e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano”. Sendo que o fim do estado é predominante sobre o fim individual; portanto, o bem comum, é comandado e desejado pela legislação. Também presente em Tomás de Aquino quando menciona que hábitos podem ser infundidos por Deus no homem, isso parece corresponder com o que pretende Anscobem, a saber, uma potência divina que pode atuar internamente no homem. Além desse fator, há, em Aquinas, outro ponto que propõe a influência de uma legislação sobre o fim humano. Na questão 58, artigo 5, Aquinas sustenta que a lei ordena o homem ao bem comum, e isso já havia sido mencionado na questão sobre “A Essência da Lei” em que ele corrobora com Aristóteles de que há uma lei que visa o bem comum para garantir a felicidade da comunidade. Portanto, defendo que a legislação externa, seja a política para Aristóteles seja a divina para Tomas, ainda que não tenha uma função de regência (interna) das virtudes morais, influenciam em seus resultados por meio da retificação de uma ação virtuosa visando ordenar as virtudes morais para um bem comum, a saber, a eudaimonia.
    Ao que tudo indica, há uma legislação tanto em Aquinas quanto em Aristóteles, sendo que a noção da lei é semelhante entre os filósofos, pois, como visto, Aquinas utiliza a noção de legislação aristotélica para tratar sobre a essência da lei e sobre o modo de como as virtudes morais se relacionam com a legislação. O problema que foi explorado até aqui parece ser a posição que ocupa a legislação: 1) ou no interior do humano de maneira a reger a disposição moral bem como a deliberação, nesse caso, como sendo meios para a ação, 2) ou no exterior de maneira a retificar as ações humanas visando um bem comum, nesse caso, visando os fins das ações humanas. Portanto, concluiu-se que 1 está incorreta, pois Aristóteles propõe que é importante para a Ciência Política ordenar os atos humanos para um fim comum e Aquinas corrobora com o Filósofo na questão que trata sobre a essência da lei. Portanto, Tomas de Aquino está a favor do tratado moral aristotélico.  

A LEGISLAÇÃO ENQUANTO RETIFICAÇÃO DOS ATOS HUMANOS E A REPERCUSSÃO DA NOÇÃO DE JUSTIÇA ENQUANTO VIRTUDE MORAL ENTRE TOMÁS DE AQUINO E ARISTÓTELES
   
O que pretendo apontar é uma contradição aparente que advém do que foi desenvolvido até aqui. Foi admitido, em Aristóteles, que as virtudes morais pertencem à alma humana; por isso, estão localizadas no interior do homem e são manifestadas a partir do ato de acordo com o princípio racional. Esta noção de virtude humana é corroborada por Aquinas no artigo 2 sobre a Essência da Virtude. A legislação, por sua vez, está localizada no exterior; portanto, ela não pertence à potência racional da alma humana. E foi admitido, em Aristóteles, que as leis, por meio da Política, influenciam no fim das ações humanas; e isto é corroborado por Aquinas. A questão que coloco é: como pode algo exterior influenciar, de maneira a retificar, aquilo que pertence ao interior? Será que não teria sido essa aparente contradição que fez Anscombe transferir a legislação para “dentro” da potência racional humana utilizando, para isso, os valores cristãos? Entretanto, se assim for, teria que ter feito o mesmo com Aristóteles, pois, independentemente dos valores (sejam cristãos ou não), a lei aristotélica também haveria de ser transferida para o interior, na potência racional humana, na medida em que o Filósofo admite a existência de uma legislação.
Uma possível resposta para essa aparente contradição talvez pudesse ser assim: a manifestação da virtude, a partir do ato, faz com que ela seja exposta ao exterior e, uma vez externa, pode se vincular àquilo que é externo, no caso, a legislação e, a partir disso, ser retificada. Entretanto, essa resposta não é suficiente para explicar de que maneira há uma “ligação” entre virtude moral e legislação, ligação no sentido de retificação, ou seja, de influenciar nos atos da virtude de maneira a ser possível mudar, inclusive, os hábitos humanos. Defendo a ideia de que não há contradição se houver uma virtude que desempenhe uma função humana de maneira a ter relação com o exterior e, assim, possuir uma relação “ponte” entre virtudes morais (interior) com legislação (exterior). Talvez seja por isso que a justiça, virtude que desempenha esse papel, seja denominada por Aquinas como uma virtude especial. Especial no sentido de que, conforme Aquinas (q. 58, a. 6), a justiça possui uma essência que difere das demais virtudes, pois ela tem um poder de gerar um efeito sobre elas na medida em que as ordena para um Bem Comum que, nesse caso, ordena de acordo com um fim último, pois é um fim que vai além do fim das virtudes “não especiais”. Por isso, ela não é uma virtude comum.
No artigo 5 da mesma questão, parece ficar mais claro a concepção de Aquinas sobre a justiça. Minha interpretação segue assim:
  1. O Bem de cada virtude é orientado pela justiça;
  2. A justiça, enquanto virtude especial, ordena o Bem de cada virtude a um Bem Universal;
  3. Portanto, os atos de todas as virtudes são da justiça;
  4. Logo, a justiça é virtude geral;
  5. Como a lei ordena o homem ao Bem Comum;
  6. A justiça submete o homem à lei;
  7. Portanto, a justiça orienta ao Bem Comum os atos de todas as virtudes.
Uma vez que a legislação tem influência sobre as virtudes morais, a justiça, portanto, estaria de acordo com a lei e de acordo com os atos das virtudes. Por isso, em função de sua essência, ela tem um poder de estabelecer uma ligação entre as virtudes morais (interno) com a lei (externo). Esta interpretação advinda do texto de Aquinas parece não ser muito diferente da que fiz sobre o texto de EN V-1. Minha interpretação vai de 1128b 5 até 1130a 10. Segue assim:
  1. A justiça é o cumprimento da lei;
  2. As coisas lícitas que são decididas pela legislação pertencem à justiça;
  3. Portanto, o cumprimento da lei de acordo com o que é decidido pela legislação é a justiça;
  4. Sendo a lei a prescrição de certa conduta;
  5. Segue, então, que a justiça é cumprir a prescrição de certa conduta de acordo com o que é decidido pela legislação;
  6. Tendo em vista que o pronunciamento da lei visa produzir e preservar a felicidade da comunidade (bem comum);
  7. Conclui-se, portanto, que a justiça é cumprir o que está prescrito pelas decisões da legislação, nesse caso, as leis pronunciadas para que haja a produção e a preservação da felicidade.
Três fatores devem ser destacados nesse argumento, a saber: 1) cumprir aquilo que é prescrito deve ser colocado em ato, pois, como visto no livro I da EN, não podemos saber se um sujeito é justo quando está dormindo; 2) esta justiça deve ser entendida, conforme Aristóteles, enquanto virtude geral e não no sentido particular; 3) as leis devem ser pronunciadas corretamente para que os vícios sejam proibidos enquanto as virtudes não. Por isso, a justiça é a virtude perfeita, pois é a manifestação do ato virtuoso (fator 1) de acordo com aquilo que é prescrito para cumprir as leis pronunciadas de maneira correta (fator 3) para que, assim, haja a garantia da felicidade (Eudaimonia) da vida política e do bem comum (público) e não somente do privado (fator 2).
Esse argumento, advindo da leitura do livro V-I, parece, como visto, ser corroborado por Tomas de Aquino na questão 58 artigo 5 em que Aquinas refere que o bem de cada virtude é orientado pela justiça de acordo com o bem comum; portanto, os atos de todas as virtudes são da justiça, segue-se, então, que a justiça é virtude geral. Entendida como virtude geral, a lei ordena o homem ao bem comum; a justiça, por sua vez, submete o homem à lei, segue-se, portanto, que a justiça orienta ao bem comum os atos de todas as virtudes morais. No artigo seguinte, Tomas refere que a justiça, enquanto virtude geral, tem o poder de ordenar os atos das virtudes a um bem comum uma vez que a justiça submete o homem à lei.
Portanto, a noção de justiça em Aristóteles e Tomás de Aquino é entendida como havendo uma legislação externa que visa retificar a ação humana visando um fim ulterior que é o bem comum. Por isso, a legislação não age no interior do humano, mas nas relações que são estabelecidas entre os humanos de maneira a retificá-las; sinal disso é a própria concepção de justiça que é a relação com outrem. Além dessa concepção, a justiça ordena todas as virtudes, quando estas alcançam o seu fim particular, para um fim comum e último. O que entendo disso é que a justiça, enquanto cumprimento de uma legislação, não age no interior, pois, conforme Aquinas, ela abarca “somente as ações e coisas exteriores, sob o ângulo especial de um objeto, a saber, enquanto por elas um homem é colocado em relação com outro” (q. 58, a. 8, p. 69). Nesse sentido, Aquinas não parece colocar a legislação como regendo as virtudes morais, pois estas são regidas pelo ato deliberativo de acordo com a razão visando um fim. A legislação, por sua vez, busca ordenar os fins visados pela deliberação humana para um bem comum, mas não rege internamente no humano, apenas, como dito, exteriormente. Essa concepção de Aquinas é semelhante a proposta por Aristóteles. Portanto, isso indica uma tese contrária à proposta por Anscombe, pois o ato deliberativo das virtudes advém do próprio homem e não da legislação; esta ordena os atos para um bem comum, mas não são responsáveis por colocá-los em ação.
Portanto, destaca-se que a justiça possui, ao menos, três especificidades, a saber, 1) sempre está em relação a outrem; 2) engloba o fim de todas as virtudes; 3) ordena o fim de todas as virtudes para um fim último de acordo com a lei, no caso, para um Bem Comum. Para Aristóteles (EN V-1), é em função do Bem Comum visado pela justiça que faz com que ela esteja sempre em relação com outro; Aquinas corrobora com essa noção no artigo 5 da questão 58. Isso porque a justiça impõe ao homem a ordenar seus atos de acordo com a comunidade.

    A LEI ETERNA E A DIVERGÊNCIA ENTRE TOMÁS DE AQUINO E ARISTÓTELES
A diferença que parece haver entre Tomas e Aristóteles está no ponto 3 mencionado anteriormente “3) as leis devem ser pronunciadas corretamente para que os vícios sejam proibidos enquanto as virtudes não”. Conforme escrito em EN V-1 “A lei nos ordena praticar tanto os atos de um homem bravo [...] quanto os de um homem temperante [...]; e do mesmo modo com respeito às outras virtudes e formas de maldade, prescrevendo certos atos e condenando outros”, ou seja, a lei condena os atos viciosos e prescreve os virtuosos. Por fim, “a lei bem elaborada faz essas coisas retamente, enquanto às leis concebidas às pressas as fazem menos bem”. Aristóteles admite, portanto, que deve haver uma legislação composta por leis que prescrevam determinados atos e condenam outros; entretanto, ele não delineia como seria uma legislação correta e quais leis são necessárias para isso. Na EN V-1 ele parece, em 1129a- 30, estar definindo o que é a justiça; em 1129b-15, menciona a aplicação da justiça que é aplicada de acordo com o que é decido pela legislação; ainda neste texto, confere, também, qual o objeto da justiça, a saber, a lei, pois as leis conduzem ao Bem Comum produzindo e preservando a felicidade da vida política. Por fim, em 1120b-25, designa que a justiça é a virtude perfeita, uma vez que, como mencionado, é ela que faz a ligação das virtudes humanas para o bem comum a partir do cumprimento da lei. Entretanto, apesar de referir que os humanos agem de acordo com o principio racional colocando em ato as virtudes e que há uma virtude especial, a justiça, que ordena os atos virtuosos para um Bem Comum, sendo este Bem Comum relacionado com a legislação e esta tem que ser uma legislação correta porque composta por leis que prescrevem atos virtuosos e condenam atos viciosos fazendo com que a comunidade seja orientada a um caminho correto, Aristóteles não menciona quais são as leis que compõem uma legislação para que esta seja correta.
Em Tomás de Aquino, que também admite uma legislação que dirige os atos virtuosos a um Bem Comum por meio de uma virtude especial (a justiça), parece haver divergência em comparação a Aristóteles em função de que, ao que tudo indica, Aquinas menciona qual a lei que faz com que a legislação seja correta. Qual seria a legislação correta? Aquela cuja lei advém de Deus, no caso, a lei eterna. Portanto, há uma legislação correta em Aristóteles e em Aquinas, a diferença é que Tomas de Aquino parece indicar qual é a lei que faz uma legislação ser correta porque é uma lei que garante a bondade. Conforme Aquinas “Além da lei natural e da lei humana, foi necessário para direção da vida humana ter a lei divina” (q.91, a. 4). Seguindo suas palavras: “Para que o homem, pois, sem qualquer dúvida possa conhecer o que lhe cabe agir e o que evitar, foi necessário que, nos atos próprios, ele fosse dirigido por lei divinamente dada, a respeito da qual não pode errar”. Portanto, há uma legislação divina que possui as quatro características mencionadas anteriormente, a saber, eterna, externa, ato puro e fim último que é Deus. Sendo que esta lei não pode levar ao erro.  
A questão é retornar ao que já foi discutido, a saber, essa lei divina, uma vez que não pode levar ao erro, levará o homem sempre ao acerto? Como dito anteriormente, e seguindo a lógica do que pareceu propor a crítica contrária a Anscombem, a resposta foi não. Entretanto, em relação à lei divina, esta, ao que tudo indica, dirige o homem ao acerto. Ao fazer isso, insere-se algumas questões:
  1. Se há uma lei advinda de Deus, e Deus é a imagem e semelhança do homem, sendo essa lei aquela que conduz necessariamente ao Bem Comum, então, o homem é bom, pois possui uma essência que o ordena necessariamente ao Bem Comum. Isso é o que Irwin propõe (citar) e é justamente isso que diferencia Tomas de Aristóteles.
  2. Ao estabelecer uma legislação correta composta pela lei divina, será que, necessariamente, em função disso, o homem deve ser bom? Essa pergunta questiona o que propõe Irwin.
  3. A lei eterna advém de Deus, Deus é a imagem e semelhança do homem; portanto, o homem é bom porque essa lei pertence ao homem e faz com que ele seja destituído de pecados. Uma vez que esta lei eterna de Deus é do homem e faz com que a legislação seja correta, esta lei, então, não estaria no interior do homem? E, nesse ponto, não estaria Anscombe correta uma vez que, no interior do homem, a lei passa a ser cumprida como um dever necessário e universal?  Uma vez que essa legislação divina atribui uma essência boa ao homem, será que Anscombe, em função disso, teria colocado a legislação como sendo interna ao homem e, por isso, sustentou que a moral de Aquinas difere radicalmente da aristotélica?
  4. A legislação divina estaria relacionada apenas a Deus e não ao homem uma vez que a lei divina difere da lei humana?
Portanto, estes questionamentos podem ser levantados em função de que Tomas, ao admitir a existência de uma legislação correta, assim como Aristóteles, confere a ela uma lei, no caso, a eterna.  
Quanto ao 4, foi respondido acima a partir da citação direta de Tomas que argumenta que a lei divina ordena a ação humana. Portanto, a lei divina não pertence somente a Deus.
    Quanto ao 3, ao desenvolver a lei eterna, Aquinas parece se apoiar muito em Santo Agostinho e no texto bíblico. A necessidade da lei divina, segundo ele, ocorre em função de quatro motivos. Ela ocorre1) para que o homem atinja a visão beatifica ao se dirigir para Deus, pois o mundo é governado por uma providência divina como ficou dito no primeiro artigo sobre a Lei Eterna; 2) para que o homem não tenha juízos contingentes e contraditórios; a lei divina estabelece um único modo reto de orientar a vida humana; 3) para que o homem possa ordenar os atos interiores, pois a lei divina é a que pode transcender o exterior e 4) para eliminar todo o mau, pois a lei humana não é párea para isso. Portanto, o que se poderia concluir é que a lei eterna é algo que Aquinas acrescenta e isso faz com que, nesse ponto, haja uma divergência em relação a Aristóteles. A lei eterna é o que parece ser o diferencial de Aquinas quando comparado a Aristóteles, pois ela transcende a legislação de um legislador, ela está em um grau que diverge, pois é uma relação entre os homens, mas de acordo com Deus e não com um legislador humano.
    Acontece é que mesmo que a lei eterna esteja na essência humana, é necessário o princípio racional na condição humana para que haja uma deliberação para buscar o fim divino (visão beatifica). Caso contrário, Aquinas teria feito um método semelhante ao de Descartes, que consiste em duvidar do mundo sensível para realizar uma meditação interior e, a partir disso, ao ter a confirmação da existÊncia de Deus, voltar-se para o mundo de acordo com as certezas da lei sobre o mundo sensível. Em Aquinas, ocorre um processo contrário, é no mundo sensível que, a partir das abstrações, é possível, então, conceber a causa divina e agir de acordo com uma razão que participa da providência divina. Não cheguei a me aprofundar o tópico a seguir, apenas levanto uma hipótese “às cegas”, mas algo que analisaria é se a proposta de Anscombe não estaria mais relacionada com o modelo cartesiano do que tomista, pois, em caso positivo, seria na filosofia moderna, com o racionalismo, que a noção de dever e moral seria descartada, e não com a escolástica.
    O que pretendo concluir é que há, em Aquinas, duas legislações: a humana e a divina. A humana é semelhante a proposta por Aristóteles; enquanto a divina não. Entretanto, o modo do homem agir conforme a razão frente a essas duas legislações (uma que possui a lei humana e outra que possui a lei divina) é semelhante. A proposta de Aquinas parece indicar que o homem tem a potência para agir de acordo com as predições da lei eterna e, feito isso, desenvolver uma lei de acordo com a lei divina. Uma vez que isso for possível, irá repercutir na noção de justiça, uma vez que a justiça divina é perfeita, pois está de acordo com a lei eterna. O que parece haver um Aquinas, que difere de Aristóteles, é que a justiça humana pode sofrer mudanças até se elevar conforma a justiça divina para que o homem possa atingir a visão beatifica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANSCOMBE, G. E. M. Modern Moral Philosophy. Philosophy, vol. 33, n. 124, 1958.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Loyola: São Paulo, 2012.
CRASNIEVICZ, Jaecir. A Noção de Justiça em Tomás de Aquino: uma leitura da suma teológica. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 1998.
HARDIE, W. F. R. Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles. In: ZINGANO, Marco, Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles: Textos Selecionados. Odysseus: São Paulo, 2010. p. 42-64.
IRWIN, T. H. Tomas de Aquino, lei natural e eudaimonismo aristotélico. In: KRAUT, Richard, Aristóteles: a Ética a Nicômaco. ARTMED: Porto Alegre, 2009. p. 297-313.
PIGDEN, Charles. Anscombe on ‘Ought’. Philosophical Quarterly, vol. 38, n. 50, pp. 20-41, 1988.