Para desenvolver o presente texto, é
preciso, antes, fazer uma definição operacional de dois conceitos, a saber,
emissão e omissão, isto é, defini-los para que seja possível, então, operar em
sentido inteligível não com esses dois, mas com outro conceito, a saber,
‘transmissão’. Portanto, o objetivo ao longo do semestre é encontrar uma
definição para o conceito de ‘transmissão’ de modo a oferecer o seu modus operandi no exercício teórico-prático[1] docente. Aqueles dois
conceitos introduzidos serão, primeiramente, definidos com intuito de destacar
sua diferença em relação àquele pertencente ao objetivo proposto.
Sugiro definirmos ‘emitir’ enquanto o ato
de ou enviar ou colocar ou inserir em um espaço X (seja concreto ou abstrato)
alguma coisa T (também ou concreta ou abstrata) de modo que esta afeta, de
algum modo, aquele, ou seja, o espaço, de algum modo, sofre uma mudança quando
a coisa é ou enviada ou colocada ou inserida nele; a ‘emissão’, portanto, é o
fenômeno de T sendo ou enviado ou colocado ou inserido em X e, em função disso,
X tem mudança, isto é, ele passa a ser afetado por T. Alguns exemplos podem ser
ilustrados: ‘a emissão de gases poluentes’, ‘a emissão de um cheque’, ‘eu emito
um som alto’, ‘eu emito boas vibrações a ele, ‘o professor emitiu informações’
e etc. Todos exemplos, portanto, indicam que algo T foi ou enviado ou colocado
em um espaço X. Apenas por curiosidade, é possível se dar conta de que é
necessário mencionar o que é o algo X, enquanto o espaço T, por sua vez, não
temos sua informação, apenas o supomos; sua informação não é necessária, portanto.
Em nenhum dos exemplos foi mencionado em que local os gases poluentes foram
emitidos, em que local o som alto foi emitido, mas é preciso saber que o que se
emitiu foram gases, sons e etc. Talvez não seja apenas curiosidade, se
utilizarmos o seguinte exemplo “ideias foram emitidas”, ressalta-se, como
mencionado de acordo com a definição, que ideias podem ser emitidas em um
espaço abstrato (o que não significa que seja inexistente como, por exemplo, o
espaço definido por Guatari de ‘Cartografia’ (1986) é um espaço abstrato que
representa um espaço concreto, ele existe, portanto).
Quanto à palavra ‘omitir’, não é o oposto
de ‘emitir’, pois se emitir é inserir algo T em um ambiente X, então ‘omitir’,
caso fosse o oposto, seria retirar algo T de um ambiente X; todavia, não é
assim que se segue. ‘Omitir’ não requer ação, pois significa apenas não inserir
T em um espaço X, isto é, ou não enviar ou não colocar ou não inserir em um
espaço X alguma coisa T. Portanto, não há mudança no espaço, este permanece o
mesmo, também não implica, necessariamente, haver algum tipo de alteração em
algo W envolvido enquanto efeito da omissão (algo W enquanto efeito também
ocorre, não necessariamente, na ‘emissão’). Por exemplo, “professor omitiu uma
informação”. A informação, portanto, não foi retirada, apenas não foi inserida
no espaço; este, por sua vez, não tem nenhuma mudança, apesar disso, pode
acarretar algum tipo de efeito nos alunos, supomos que, ao omitir uma
informação, os alunos não sabem o dia que não haverá aula e, ao chegar,
deparam-se com a porta fechada e, assim, podem se sentir com raiva. Quanto à
emissão, os gases poluentes, uma vez colocados no espaço, geram efeitos
prejudiciais à saúde das pessoas (estas, então, estão envolvidas enquanto
efeito da emissão). Portanto, tanto omissão quanto emissão causam efeitos no
espaço de modo que as coisas W envolvidas podem ou não reagir; a diferença é
que, enquanto a emissão insere algo no espaço, a outra não retira, pois, o que
há, é ausência – ou, se preferir, lacuna.
Pretendo sustentar que ‘emissão’ e
‘omissão’ são relações de unilateralidade. No contexto pedagógico, que é de
nosso interesse, ou ao emitir ou ao omitir um conteúdo na sala de aula aos
estudantes, ainda que estes possam se sair prejudicados enquanto efeito da
omissão, ainda assim, estão em relação meramente de recepção diante das
informações ou enviadas ou não pelo professor; e mesmo que a emissão de
conteúdos implique mudanças no espaço e gere efeitos nos ouvintes, ela não é
desenvolvida em “saltos qualitativos”[2] (Morin) naquela realidade
espacial, é como se fôssemos colocando objetos no porão de casa, ficam lá, só
não o enterramos porque se espera que tais inutilidades se tornem úteis um dia:
mera ilusão de um ego prendido. É como se você chegasse em uma cidade em que
está sendo acumulada, durante anos, por propagadas políticas emitidas em
veículos de comunicação de modo que nenhum dos habitantes com quem você
conversa nem ao menos questiona ‘o que são essas propagandas?”, “por que há
propagandas?”, “de onde elas vem?”, “o que tem por trás daquilo que elas mostram?”. Os habitantes são apenas
receptáculos que ora reagem ou não aos efeitos, nunca terão utilidade porque
não transformam a realidade, pois, não necessariamente, reagem – a ação, por
sua vez, não ocorre. É como se estivessem anestesiados do excesso da emissão.
Importante destacar que a relação entre
emissor-receptor/omissor-receptor, ainda que unilateral, não implica,
necessariamente, que o receptor seja passivo, ou seja, ele pode ter alguma resposta
frente à emissão/omissão. Como visto, o professor, ao omitir uma informação na
sala de aula, pode gerar, como efeito, resposta dos estudantes, mas esta resposta
não é necessária, ou seja, os estudantes ora podem ou não fazer algo. Além
disso, se feito algo, a resposta é uma reação frente ao estímulo (seja positivo
ou negativo) do professor em relação ao meio, sendo assim, o efeito está mais
para uma reação do que para uma ação propriamente dita - e tal ponto é de importância para introduzir
o conceito de transmissão, uma vez que pretendo sugerir que esta implica, necessariamente,
uma postura ativa (e não, de maneira suficiente, uma anestesia assim como os
habitantes da cidade imaginária). Em outras palavras, não implica,
necessariamente, que o receptor, em relação a uma dada emissão/omissão, tenha
alguma reação; caso tiver, responde ao estímulo positivo (emissão) ou negativo
(omissão) sem, necessariamente, envolver algum tipo de atividade cognitiva; por
isso, a relação é quase que por instinto automático – como mencionado, é apenas
receptivo, um receptáculo. Logo, não há quase diferença alguma, na qualidade da
reação frente a uma dada emissão/omissão, entre humanos, não-humanos e coisas,
pois estes ou podem ou não reagir àquilo que é emitido/omitido, por exemplo, o
oceano pode reagir frente à emissão de poluentes em um dado rio assim como também
uma pessoa W de uma dada religião pode reagir quando seu líder omite algum
objeto T no espaço X. A pessoa é um mero reflexo do estímulo.
A ‘transmissão’, ou melhor, trans-missão,
difere quanto à qualidade da relação. A ‘missão’ advém da palavra latina
‘mittere’, isto é, ‘enviar’; ‘trans’, por sua vez, advém da palavra grega
‘meta’, que significa para além, por
exemplo, ‘metafísica’ é o que está para além da física. Logo, ‘trans’ é o que
está para além daquilo que faz referência, ou seja, se há uma coisa T seja
abstrata ou concreta existente seja em espaço X ou material ou abstrato, fazer
referência à coisa T em si difere de fazer referência para além da coisa T em si. No caso da ‘trans-missão’, denota-se o
que está para além do envio, ou seja, transmitir é realizar algo que está para
além da emissão/ omissão do dado em si. Necessário analisar, portanto, o que
está para além do envio ou não-envio em si.
Quando um estudante emite/omite uma
informação T na sala de aula, colegas e professor não necessariamente reagem
frente ao que ele diz; entretanto, se há gestos sensíveis que envolvem, por sua
vez, atenção sensível tanto do estudante quanto dos colegas e professor, então
há tentativa de compreender não só a fala em si (o que foi emitido/omitido),
mas, também, o que está para além da
fala, ou seja, o que está por trás:
aí ocorre transmissão. Em outras palavras, é o que faz referência para além do dito (conteúdo emitido) e
do não-dito (conteúdo omitido) que implica no comprometimento de ter postura
ativa para percorrer a cadeira de associação que leva para além do conteúdo
dado em si de modo a compreender o que ele significa. A compreensão por meio de
gestos sensíveis que envolvem atenção sensível àquele que emite/omite alguma
coisa T no espaço X passa a abrir um campo que transcende a emissão/omissão de T
em si, há algo que faz referência para além tanto do que é dito quanto do que
não é dito. Então, para compreender a transmissão e percorrer sua associação,
implica, necessariamente, que os sujeito envolvidos, uma vez que precisam
buscar o que está para além do dito e/ou do não-dito em si, terem ação, pois
compreender o que está ‘por trás’ não é mera reação que ou pode ou não ocorrer;
pelo contrário, é justamente a necessidade de ação, pois requer um mínimo de
envolvimento. Por isso, há, na transmissão, relação bilateral porque os
sujeitos estão vinculados em seus gestos sensíveis de modo a compreenderem e a
buscarem, em dinâmica coletiva, a referência que está para além de T em si
(sendo que a atenção sensível também ocorre no próprio estudante que fala,
logo, ele passa a fazer parte do processo). Uma vez que todos fazem parte do
processo da transmissão, isto é, compreender o que está para além daquilo que
foi dado em si, há a formação de um coletivo.
No momento que um estudante fala uma ideia
que teve e comunica um pensamento que pode ser expresso, essa sua forma de
significar as suas associações que são frutos de sua atividade cognitiva,
insere-se no espaço tendo um significado dado. Uma vez que demais estudantes,
professor e, inclusive, o próprio estudante que fala estão sensíveis àquele
significado dado, há sua vinculação cuja implicação é agir sobre ele de modo a
cada um dar a sua forma de significa-lo para si e tentar compreender como cada
um buscou a sua forma de significar para si, assim, resulta necessariamente em
compreender o que está por trás do significado dado em si, pois no momento em que se busca significar o
significado dado em si, os sujeitos já estão comprometidos com uma busca para
além daquilo que foi, em si, dado como significado de modo que até mesmo o
próprio estudante que lançou o significado dado em si pode, ele mesmo, dar uma
nova forma de significar o que foi dado em si. O processo, portanto, abre um
campo de entraves dialógicos, alguma confusão de significados ocorre,
discorre-se na necessidade de compreender tanto a si quanto ao outro e, também,
ao Outro, pois o que está por trás do que está por trás daquele que fala: é sua
cultura, é sua história, é sua comunidade? Portanto, não há apenas uma reação,
mas uma ação de formação de vínculos que repercute em um coletivo que busca
desenvolver alguma síntese nesse campo de significados que tem intuito de percorrer
e compreender o que está por trás do significado em si. Haverá dúvidas,
estranhamentos, incertezas, incômodos, desânimos seguidos de reânimos, tensões,
espantos, surpresas e etc.
Esse processo dado pela transmissão é
justamente o rico resultado de trabalho pedagógico que realizamos por meio da
arte ao longo do semestre. O objeto de pensar, uma vez colocado no espaço,
desencadeou em processo de compreender tanto o percurso feito que está para
além do objeto de pensar dado em si quanto compreender a forma que o significa
de modo que cada um teve a sua forma de significar aquele conteúdo estético. Na
medida em que cada um se vincula com o outro para percorrer e compreender o que
está para além do objeto em si, o pensamento se torno coletivo, pois há
diferentes formas de significar o conteúdo; talvez se chegue em uma síntese,
talvez não; entretanto, independente dela, o que é essencial é a abertura
sensível à estética. Por isso, os choques sintético-exploratórios[3] advindos da própria
prática artística que pode ser teorizada nas diferentes formas de significação.
[1] De acordo com a teoria marxista, Politzer (1935),
Besse e Caveing (1970) destacam que sua epistemologia ocorre por meio do eixo
teórico-prático, isto é, a teoria advém da prática de modo que ambas estão
interligadas na produção de conhecimento científico.
[2] Morin refere que seu Paradigma da Complexidade é
semelhante ao modelo de dialética de Hegel; quando trata sobre o seu conceito
‘saltos qualitativos’, refere que a complexidade requer forças contrárias para
que haja um fenômeno de aprimoramento na qualidade da aquisição do conhecimento
na medida em que resiste à fragmentação do saber.
[3] No
livro ‘O que é Filosofia?’ de Deleuze e Gattari, os filósofos desenvolvem
dialética sustenta por choques advindos das sínteses, mas mais no âmbito
teórico; a transmissão, nesse caso, destaca papel fundamental também do eixo
prático de modo a envolver explorações do fazer artístico.
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