domingo, 4 de maio de 2014



Para refletir sobre o conceito de interdisciplinaridade é aconselhável, antes, realizar tentativas para definir o conceito de disciplina para, assim, posicioná-la (a disciplina) em um campo cuja atuação se faz por meio de uma relação mútua, ou seja, colocá-la logo após o prefixo “inter”.
O inter precedido de disciplina, como ilustrado acima, está envolvido numa ordem semântica, ou seja, é necessário elucidar que, pelas disposições das palavras inter-disciplina, o prefixo alude à noção de que há um relacionamento mútuo antes de qualquer conceito que lhe procede, assim, primeiramente, o inter é um convite ao pensamento extinto de ruptura, visto que remete, necessariamente, à relação – caso contrário, a terminologia teria como palavras dispostas o prefixo ou “mono-disciplina”, ou “uni-disciplina” -; portanto, a partir disso, trata-se de uma relação mútua a partir daquilo que lhe procede: a disciplina. No entanto, vale ressaltar, adiantando alguns parágrafos, que esse conceito, além de estar disposto em uma ordem semântica que remete à relação mútua como um funcionamento sine qua non, também está numa ordem prática do fazer, ou seja, o relacionamento mútuo tem de estar, primeiramente, em ação – inter - para, então, a partir dele, haver a disciplina como movimento cuja interação mútua foi estabelecida anteriormente. Há, então, um possível questionamento, tudo aquilo que terá alguma forma de relacionamento mútuo posto em ação – o inter - resultará em disciplina? Talvez, por isso, o aconselhamento introdutório, ou seja, a tentativa de conceituar disciplina para clarificar que tipo de relação mútua está sendo estabelecida para que se tenha, a partir dela, o movimento de ordem disciplinar.
 A disciplina, segundo o dicionário, é a submissão às regras, às normas; é a regulamentação que garante a satisfação de indivíduos ou instituições; é a boa conduta; é a matéria ensinada na escola, na faculdade; é o modo de agir que demonstra constância, métodos; é a boa ordem, respeito; é o ensino; é a autoridade; é a obediência à autoridade; é o estudo de um ramo do saber humano; é a instrução, a educação. Assim, há diversas definições conceptuais de disciplina nas quais remetem, em resumo, ao comportamento, ao ensino e ao submetimento do sujeito. Assim, a disciplina parece estar envolvida com àquilo que concerne ao enrijecimento, à limitação, à impossibilidade de abertura, ao cercamento, à padronização de um modus operandi sem opções de questioná-lo - caso contrário, há perigo de desordem, de desentendimento – porque se evita qualquer ação que possa, quando modificada, levar à incerteza, visto que esta pode resultar no caos. Além disso, disciplina possui a mesma etimologia da palavra discípulo; no entanto, para ser discípulo, há a necessidade de existir ou um mestre, ou um professor, ou um instrutor quem transmitirá determinado conhecimento àquele que lho tem como modelo identificatório – seu discípulo.
   Assim, a relação discípulo-instrutor estabelece uma aliança necessária de parceria para o desenvolvimento do conhecimento, sendo o discípulo aquele quem possibilita, a partir de suas vivências e experiências, à ampliação do campo do saber, auxiliando ativamente nesse movimento de abertura (FAZENDA, 2002). No entanto, a dupla está inclusa em um determinado contexto cuja influência pode determinar o modo pelo qual a sua relação se estabelecerá; nesse caso, há uma “sombra falada” (AULAGNIER, 1979), ou seja, há um paradigma existente o qual institui normatizações e padronizações as quais organizam e significam a disciplina de uma determinada maneira a qual repercutirá no relacionamento discípulo-preceptor. Assim, dependendo do modo de como for esse vínculo, o campo de abertura pode ora ampliar, ora reduzir, ora estancar. Portanto, a disciplina, como um movimento de disciplinaridade, é passível de transformação a partir do relacionamento da dupla (discípulo-preceptor), do relacionamento desta com o seu contexto – e, também, de como este com ela se relaciona – e da configuração tempo-espacial na qual esta dinâmica de relacionamentos é-está sendo realizada. Então, o movimento disciplinar é complexo, visto que está entremeado de diferentes fatores nele envolvidos os quais têm uma relação de mútua dependência. Sua conceptualização a partir do dicionário é ampla, envolvendo diferentes fatores cujos âmbitos também divergem – visto que podem estar em diferentes instituições/organizações. Poderia, então, haver mais um questionamento: teria a disciplina, então, um movimento passível de abertura epistemológica, ou seja, teria ela um modo de se envolver com objetos – seja para observá-los, seja para experiência-los, seja para transfigurá-los a um “grau melhor de evolução" - aos quais ainda não lhe pertencem e, assim, correr o risco de se modificar sem resultar em desordem, ou seja, ir contra a si mesma – numa indisciplina?
Talvez seja por isso que a disciplina, para alcançar maior desenvolvimento de seus constructos, realizou uma disciplinaridade cujo movimento se dá por meio do inter, porque essa inter(ação)disciplinar propicia relacionamentos os quais serão, primeiramente, colocados em prática no fazer para, a partir disso, (re)observar, (re)significar, (re)analisar – questões estas advindas da práxis – e, então, configurar ou as possibilidade, ou as impossibilidades desse encontro relacional cuja metodologia foi posta em prática; por isso, a prática precede a teoria.
O que tem haver interdisciplinaridade com saúde? Na medida em que a contemporaneidade trouxe a ampliação de diversas especialidades, é praticamente impossível atuar sozinho em qualquer âmbito da saúde, visto que cada profissional terá, em alguma medida, um limite o qual só será transposto no momento em que colocar em prática a sua abertura com o outro, ou seja, estará colocando a sua disciplina no campo do inter, assim, em parceria com as outras disciplinas desse campo disciplinar – também estando abertas -, quando regidas em conjunto, irão acionar a interdisciplinaridade, ou seja, cada discípulo cuja especialidade representa estará num relacionamento mútuo possibilitando, na medida do possível, menor limitação acerca da ação. No que tange à abertura ao outro, não é apenas com a equipe profissional que o campo inter atua, pois o paciente também será acolhido porque há um campo aberto a recebê-lo, sendo assim, este também é considerado nessa atuação; portanto, ele é um sujeito que participa de maneira interdisciplinar frente à sua saúde, por isso, a importância das práticas como a educação em saúde, por exemplo.
Portanto, a contemporaneidade faz um convite à saúde atuar por meio de uma campo sistêmico cuja ação se dá por uma via de construção interdisciplinar, possibilitando, a partir dessa complexidade, a inovação nas ferramentas científicas da saúde.


AULAGNIER, Piera. Os destinos do prazer. Rio de Janeiro: Imago.      

FAZENDA, IVANI ARANTES. A construção interdisciplinar a partir da relação professor/aluno. In: _____________________. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 10.ed. São Paulo: APIRUS, 2002. p. 37-46.