segunda-feira, 8 de julho de 2019

DA TRANSMISSÃO

            No presente semestre, houve disciplina cuja atividade era elaborar um conceito escolhido pelo interesse do estudante de modo a relacioná-lo à prática docente. Pensei no conceito de 'transmissão' e o elaborei conceitualmente ao longo de quatro meses. O critério era não ultrapassar três páginas; portanto, ainda estou o desenvolvendo e, conforme for avançando, atualizo a presente postagem. Então, o trabalho abaixo é resultado parcial sobre o modo como tento compreender o conceito 'transmissão'.


Para desenvolver o presente texto, é preciso, antes, fazer uma definição operacional de dois conceitos, a saber, emissão e omissão, isto é, defini-los para que seja possível, então, operar em sentido inteligível não com esses dois, mas com outro conceito, a saber, ‘transmissão’. Portanto, o objetivo ao longo do semestre é encontrar uma definição para o conceito de ‘transmissão’ de modo a oferecer o seu modus operandi no exercício teórico-prático[1] docente. Aqueles dois conceitos introduzidos serão, primeiramente, definidos com intuito de destacar sua diferença em relação àquele pertencente ao objetivo proposto.
Sugiro definirmos ‘emitir’ enquanto o ato de ou enviar ou colocar ou inserir em um espaço X (seja concreto ou abstrato) alguma coisa T (também ou concreta ou abstrata) de modo que esta afeta, de algum modo, aquele, ou seja, o espaço, de algum modo, sofre uma mudança quando a coisa é ou enviada ou colocada ou inserida nele; a ‘emissão’, portanto, é o fenômeno de T sendo ou enviado ou colocado ou inserido em X e, em função disso, X tem mudança, isto é, ele passa a ser afetado por T. Alguns exemplos podem ser ilustrados: ‘a emissão de gases poluentes’, ‘a emissão de um cheque’, ‘eu emito um som alto’, ‘eu emito boas vibrações a ele, ‘o professor emitiu informações’ e etc. Todos exemplos, portanto, indicam que algo T foi ou enviado ou colocado em um espaço X. Apenas por curiosidade, é possível se dar conta de que é necessário mencionar o que é o algo X, enquanto o espaço T, por sua vez, não temos sua informação, apenas o supomos; sua informação não é necessária, portanto. Em nenhum dos exemplos foi mencionado em que local os gases poluentes foram emitidos, em que local o som alto foi emitido, mas é preciso saber que o que se emitiu foram gases, sons e etc. Talvez não seja apenas curiosidade, se utilizarmos o seguinte exemplo “ideias foram emitidas”, ressalta-se, como mencionado de acordo com a definição, que ideias podem ser emitidas em um espaço abstrato (o que não significa que seja inexistente como, por exemplo, o espaço definido por Guatari de ‘Cartografia’ (1986) é um espaço abstrato que representa um espaço concreto, ele existe, portanto).
Quanto à palavra ‘omitir’, não é o oposto de ‘emitir’, pois se emitir é inserir algo T em um ambiente X, então ‘omitir’, caso fosse o oposto, seria retirar algo T de um ambiente X; todavia, não é assim que se segue. ‘Omitir’ não requer ação, pois significa apenas não inserir T em um espaço X, isto é, ou não enviar ou não colocar ou não inserir em um espaço X alguma coisa T. Portanto, não há mudança no espaço, este permanece o mesmo, também não implica, necessariamente, haver algum tipo de alteração em algo W envolvido enquanto efeito da omissão (algo W enquanto efeito também ocorre, não necessariamente, na ‘emissão’). Por exemplo, “professor omitiu uma informação”. A informação, portanto, não foi retirada, apenas não foi inserida no espaço; este, por sua vez, não tem nenhuma mudança, apesar disso, pode acarretar algum tipo de efeito nos alunos, supomos que, ao omitir uma informação, os alunos não sabem o dia que não haverá aula e, ao chegar, deparam-se com a porta fechada e, assim, podem se sentir com raiva. Quanto à emissão, os gases poluentes, uma vez colocados no espaço, geram efeitos prejudiciais à saúde das pessoas (estas, então, estão envolvidas enquanto efeito da emissão). Portanto, tanto omissão quanto emissão causam efeitos no espaço de modo que as coisas W envolvidas podem ou não reagir; a diferença é que, enquanto a emissão insere algo no espaço, a outra não retira, pois, o que há, é ausência – ou, se preferir, lacuna.
Pretendo sustentar que ‘emissão’ e ‘omissão’ são relações de unilateralidade. No contexto pedagógico, que é de nosso interesse, ou ao emitir ou ao omitir um conteúdo na sala de aula aos estudantes, ainda que estes possam se sair prejudicados enquanto efeito da omissão, ainda assim, estão em relação meramente de recepção diante das informações ou enviadas ou não pelo professor; e mesmo que a emissão de conteúdos implique mudanças no espaço e gere efeitos nos ouvintes, ela não é desenvolvida em “saltos qualitativos”[2] (Morin) naquela realidade espacial, é como se fôssemos colocando objetos no porão de casa, ficam lá, só não o enterramos porque se espera que tais inutilidades se tornem úteis um dia: mera ilusão de um ego prendido. É como se você chegasse em uma cidade em que está sendo acumulada, durante anos, por propagadas políticas emitidas em veículos de comunicação de modo que nenhum dos habitantes com quem você conversa nem ao menos questiona ‘o que são essas propagandas?”, “por que há propagandas?”, “de onde elas vem?”, “o que tem por trás daquilo que elas mostram?”. Os habitantes são apenas receptáculos que ora reagem ou não aos efeitos, nunca terão utilidade porque não transformam a realidade, pois, não necessariamente, reagem – a ação, por sua vez, não ocorre. É como se estivessem anestesiados do excesso da emissão.
Importante destacar que a relação entre emissor-receptor/omissor-receptor, ainda que unilateral, não implica, necessariamente, que o receptor seja passivo, ou seja, ele pode ter alguma resposta frente à emissão/omissão. Como visto, o professor, ao omitir uma informação na sala de aula, pode gerar, como efeito, resposta dos estudantes, mas esta resposta não é necessária, ou seja, os estudantes ora podem ou não fazer algo. Além disso, se feito algo, a resposta é uma reação frente ao estímulo (seja positivo ou negativo) do professor em relação ao meio, sendo assim, o efeito está mais para uma reação do que para uma ação propriamente dita -  e tal ponto é de importância para introduzir o conceito de transmissão, uma vez que pretendo sugerir que esta implica, necessariamente, uma postura ativa (e não, de maneira suficiente, uma anestesia assim como os habitantes da cidade imaginária). Em outras palavras, não implica, necessariamente, que o receptor, em relação a uma dada emissão/omissão, tenha alguma reação; caso tiver, responde ao estímulo positivo (emissão) ou negativo (omissão) sem, necessariamente, envolver algum tipo de atividade cognitiva; por isso, a relação é quase que por instinto automático – como mencionado, é apenas receptivo, um receptáculo. Logo, não há quase diferença alguma, na qualidade da reação frente a uma dada emissão/omissão, entre humanos, não-humanos e coisas, pois estes ou podem ou não reagir àquilo que é emitido/omitido, por exemplo, o oceano pode reagir frente à emissão de poluentes em um dado rio assim como também uma pessoa W de uma dada religião pode reagir quando seu líder omite algum objeto T no espaço X. A pessoa é um mero reflexo do estímulo.
A ‘transmissão’, ou melhor, trans-missão, difere quanto à qualidade da relação. A ‘missão’ advém da palavra latina ‘mittere’, isto é, ‘enviar’; ‘trans’, por sua vez, advém da palavra grega ‘meta’, que significa para além, por exemplo, ‘metafísica’ é o que está para além da física. Logo, ‘trans’ é o que está para além daquilo que faz referência, ou seja, se há uma coisa T seja abstrata ou concreta existente seja em espaço X ou material ou abstrato, fazer referência à coisa T em si difere de fazer referência para além da coisa T em si. No caso da ‘trans-missão’, denota-se o que está para além do envio, ou seja, transmitir é realizar algo que está para além da emissão/ omissão do dado em si. Necessário analisar, portanto, o que está para além do envio ou não-envio em si.
Quando um estudante emite/omite uma informação T na sala de aula, colegas e professor não necessariamente reagem frente ao que ele diz; entretanto, se há gestos sensíveis que envolvem, por sua vez, atenção sensível tanto do estudante quanto dos colegas e professor, então há tentativa de compreender não só a fala em si (o que foi emitido/omitido), mas, também, o que está para além da fala, ou seja, o que está por trás: aí ocorre transmissão. Em outras palavras, é o que faz referência para além do dito (conteúdo emitido) e do não-dito (conteúdo omitido) que implica no comprometimento de ter postura ativa para percorrer a cadeira de associação que leva para além do conteúdo dado em si de modo a compreender o que ele significa. A compreensão por meio de gestos sensíveis que envolvem atenção sensível àquele que emite/omite alguma coisa T no espaço X passa a abrir um campo que transcende a emissão/omissão de T em si, há algo que faz referência para além tanto do que é dito quanto do que não é dito. Então, para compreender a transmissão e percorrer sua associação, implica, necessariamente, que os sujeito envolvidos, uma vez que precisam buscar o que está para além do dito e/ou do não-dito em si, terem ação, pois compreender o que está ‘por trás’ não é mera reação que ou pode ou não ocorrer; pelo contrário, é justamente a necessidade de ação, pois requer um mínimo de envolvimento. Por isso, há, na transmissão, relação bilateral porque os sujeitos estão vinculados em seus gestos sensíveis de modo a compreenderem e a buscarem, em dinâmica coletiva, a referência que está para além de T em si (sendo que a atenção sensível também ocorre no próprio estudante que fala, logo, ele passa a fazer parte do processo). Uma vez que todos fazem parte do processo da transmissão, isto é, compreender o que está para além daquilo que foi dado em si, há a formação de um coletivo.
No momento que um estudante fala uma ideia que teve e comunica um pensamento que pode ser expresso, essa sua forma de significar as suas associações que são frutos de sua atividade cognitiva, insere-se no espaço tendo um significado dado. Uma vez que demais estudantes, professor e, inclusive, o próprio estudante que fala estão sensíveis àquele significado dado, há sua vinculação cuja implicação é agir sobre ele de modo a cada um dar a sua forma de significa-lo para si e tentar compreender como cada um buscou a sua forma de significar para si, assim, resulta necessariamente em compreender o que está por trás do significado dado em si, pois  no momento em que se busca significar o significado dado em si, os sujeitos já estão comprometidos com uma busca para além daquilo que foi, em si, dado como significado de modo que até mesmo o próprio estudante que lançou o significado dado em si pode, ele mesmo, dar uma nova forma de significar o que foi dado em si. O processo, portanto, abre um campo de entraves dialógicos, alguma confusão de significados ocorre, discorre-se na necessidade de compreender tanto a si quanto ao outro e, também, ao Outro, pois o que está por trás do que está por trás daquele que fala: é sua cultura, é sua história, é sua comunidade? Portanto, não há apenas uma reação, mas uma ação de formação de vínculos que repercute em um coletivo que busca desenvolver alguma síntese nesse campo de significados que tem intuito de percorrer e compreender o que está por trás do significado em si. Haverá dúvidas, estranhamentos, incertezas, incômodos, desânimos seguidos de reânimos, tensões, espantos, surpresas e etc.
Esse processo dado pela transmissão é justamente o rico resultado de trabalho pedagógico que realizamos por meio da arte ao longo do semestre. O objeto de pensar, uma vez colocado no espaço, desencadeou em processo de compreender tanto o percurso feito que está para além do objeto de pensar dado em si quanto compreender a forma que o significa de modo que cada um teve a sua forma de significar aquele conteúdo estético. Na medida em que cada um se vincula com o outro para percorrer e compreender o que está para além do objeto em si, o pensamento se torno coletivo, pois há diferentes formas de significar o conteúdo; talvez se chegue em uma síntese, talvez não; entretanto, independente dela, o que é essencial é a abertura sensível à estética. Por isso, os choques sintético-exploratórios[3] advindos da própria prática artística que pode ser teorizada nas diferentes formas de significação.


[1] De acordo com a teoria marxista, Politzer (1935), Besse e Caveing (1970) destacam que sua epistemologia ocorre por meio do eixo teórico-prático, isto é, a teoria advém da prática de modo que ambas estão interligadas na produção de conhecimento científico.
[2] Morin refere que seu Paradigma da Complexidade é semelhante ao modelo de dialética de Hegel; quando trata sobre o seu conceito ‘saltos qualitativos’, refere que a complexidade requer forças contrárias para que haja um fenômeno de aprimoramento na qualidade da aquisição do conhecimento na medida em que resiste à fragmentação do saber.
[3] No livro ‘O que é Filosofia?’ de Deleuze e Gattari, os filósofos desenvolvem dialética sustenta por choques advindos das sínteses, mas mais no âmbito teórico; a transmissão, nesse caso, destaca papel fundamental também do eixo prático de modo a envolver explorações do fazer artístico.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

IMPORTÂNCIA DA FILOSOFIA ENQUANTO DISCIPLINA CURRICULAR PARA O ENSINO MÉDIO

IMPORTÂNCIA DA FILOSOFIA ENQUANTO DISCIPLINA CURRICULAR PARA O ENSINO MÉDIO

A pretensão do trabalho consiste em, primeiramente, expor o argumento que visa defender a presença da Filosofia como disciplina no currículo escolar para que este tenha um planejamento pedagógico embasado pela interdisciplinaridade. A partir do argumento, será esboçado um breve panorama entre o currículo “simplista” e o que denominaremos de holista que será defendido em contraposição àquele. Para isso, será dada ênfase à natureza da Filosofia para que seja possível desenvolver o argumento de sua especificidade didática, pois esta é o que consolida o currículo holista. Uma vez compreendida a sua didática, será esboçado, assim como Rocha fizera, alguns exemplos em conformidade com o aspecto teórico de como a Filosofia interage com as disciplinas particulares do currículo
O objetivo do presente trabalho é defender a tese proposta pelo filósofo Ronai Rocha (a imagem de seu livro segue ao lado) de que o currículo escolar do ensino médio seja organizado de maneira holista por meio de princípios interdisciplinares, e não mais pelo princípio do presépio. Para isso, dado que a Filosofia possui uma didática especial, pois toca, por natureza, em temas transversais, ela é imprescindível como disciplina curricular na medida em que permite articulações interdisciplinares que favorecem o desenho universal desejado. Portanto, se defendemos um currículo harmônico de maneira em que cada disciplina esteja integrada e articulada “de forma inteligente com as demais” (p.19), então, é necessária a presença da Filosofia para estabelecer e sustentar essa dinâmica.
 A organização curricular mediante o princípio do presépio consiste no depósito de planejamentos pedagógicos, de ofertas didáticas e de elaboração de matérias que são propostos sem haver interação entre os seus atores; por isso, de acordo com Rocha, cada docente, nessa condição de solidão, cria um currículo cujo “resultado final não tem harmonia” (p. 17). Dessa maneira, ocorre uma justaposição entre as disciplinas sem haver, entre elas, qualquer meio de conexão. Segundo Rocha, esse modelo curricular fragmentado tem, como uma das causas, a própria formação dos cursos de licenciatura cuja cultura não enfoca trabalhos em equipe. Por isso, os professores, ao ingressarem no mercado de trabalho, transmitem as informações contidas nas listas dos conteúdos de sua disciplina sem buscar desenvolver, necessariamente, interações e planejamentos interdisciplinares.
Esse modelo curricular cujos conteúdos se restringem a uma lista previamente elaborada e transmitida de acordo com gostos pessoais de cada docente advém de uma “concepção logocêntrica do ensino” (p. 81) e se assemelha ao princípio do presépio na medida em que também deixa “pouco espaço para a criatividade em sua execução” (p. 92). Ao ficarem restritos ao planejamento de ensino que é individualmente elaborado, os professores não buscam desenvolver métodos didáticos que envolvam conceitos e temas transversais que estão contidos nas diferentes disciplinas. Dessa maneira, conforme Rocha, há uma simplificação do ensino e as reuniões são momentos apenas para tomar um cafezinho. A repercussão de um “currículo simplista” como esse gera nos alunos uma condição passiva frente às informações transmitidas, pois o plano de ensino não inclui a lógica de sua aprendizagem, ou seja, não elenca o modo de como cada um se apropria do conteúdo e, quanto à didática, esta não desenvolve passagens para transitar entre as disciplinas.
O modelo alternativo de currículo, que tem como objetivo integrar as diferentes disciplinas por meio de um método que desenvolva a interação entre seus conteúdos, é o holista. Ele está embasado por princípios interdisciplinares e, conforme Rocha, a instituição escolar que o adota como meio didático fornece uma harmonia curricular de maneira que os alunos possam preencher as lacunas de sua aprendizagem. Segundo o filósofo, ainda que o currículo que omita a dinâmica interdisciplinar não cause repercussões negativas para a aprendizagem dos estudantes, estes acabam ficando sem um espaço para abordar e estudar “conceitos fundamentais da experiência humana”. Além disso, o currículo holista “visa a formação de um ser humano que está sempre em busca de sentido e graça, e poucas coisas são mais desprovidas de sentido e graça do que um currículo fragmentado e sem vasos comunicantes” (p. 111). Tal proposta significa que a interação entre as disciplinas a partir de didáticas sustentadas por princípios interdisciplinares fornece um meio favorável de compreensão dos conteúdos na medida em que envolve as especificidades do processo de aprendizagem de cada aluno, assim, este pode dar um sentido ao que lhe é ensinado e desenvolver uma distância necessária para interrogar o mundo e a si mesmo.
As Orientações Curriculares do Ensino Médio (OCEM) também sustentam a importância de as escolas desenvolverem planejamentos pedagógicos embasados pela parceria e interação entre os professores para que haja uma coesão no corpo docente e no currículo. “O grande avanço [...] consiste na possibilidade objetiva de pensar a escola a partir de sua própria realidade, privilegiando o trabalho coletivo” (p. 7). As Orientações Curriculares incluem ainda, como um dos componentes do currículo que denominamos de holista, a “integração e articulação dos conhecimentos em processo permanente de interdisciplinaridade e contextualização” (p.7). Esse modelo curricular, conforme Rocha, também auxilia as escolas na medida em que desacelera a máquina da burocratização.
  Para integrar os trabalhos curriculares a partir da interlocução entre as disciplinas, não somente atitudes e hábitos que visam a cooperatividade são importantes, mas, também, dois aspectos que são inerentes para um currículo holista, a saber, 1) o modo de como a natureza do conhecimento humano é concebida e 2) o dispositivo metodológico adotado para desenvolver interfaces conceituais (ROCHA). Quanto ao primeiro, a proposta de um currículo embasado pela dinâmica interdisciplinar depende do modo de como concebemos a natureza do conhecimento humano. Conforme Rocha, “um lugar comum nos estudos curriculares consiste em lembrar que aquilo que pensamos sobre a natureza do conhecimento humano tem relevância para nossas decisões no campo de elaboração de currículos” (p. 28). Esse tópico que relaciona a interdisciplinaridade ao âmbito epistemológico para, de acordo com Rocha, viabilizar a elaboração de um currículo holista não será tratado nesse trabalho, para isso, indica-se o artigo de Olga Pombo (2008) – “Epistemologia da Interdisciplinaridade” – que tem esse tema como enfoque.
Em relação ao dispositivo metodológico para haver o desenvolvimento de interfaces conceituais com intuito de promover a interação entre as disciplinas, é imprescindível, de acordo com Rocha, a inclusão da Filosofia como disciplina curricular. Conforme o filósofo:
Diante da tradição secular que a Filosofia traz consigo, como uma disciplina que quer pensar a totalidade dos objetos ou avaliar a justeza das ações, não podemos deixar de ver que os estudos curriculares em Filosofia tem ao menos uma característica muito especial: precisamos dizer como vemos as relações da Filosofia com as demais disciplinas; precisamos também especificar como se concretizam essas relações no cotidiano do ensino” (p. 19).

            A Filosofia propicia a interação disciplinar em função de sua natureza: “O professor de Filosofia não pode contribuir ainda mais para o alheamento entre as disciplinas. Essa exigência decorre da própria natureza da Filosofia” (p. 111). Dada a sua peculiaridade de desenvolver o alheamento entre as diferentes áreas do saber, a Filosofia, como disciplina, deve, portanto, “valorizar as demais disciplinas e atividades escolares” (p. 111). Para ilustrar esse aspecto de interação curricular que é próprio da Filosofia, Rocha cita em seu texto a concepção aristotélica que a designa como sendo a “ciência que estuda o ser enquanto ser e as propriedades que lhe competem enquanto tal. Ela não se identifica com nenhuma das ciências particulares”. Ou seja, a Filosofia difere das demais disciplinas na medida em que não visa estudar fragmentos da realidade, mas a sua totalidade, isso significa “que ela procura pensar sob o ponto de vista mais geral possível” (Rocha, p. 70). Portanto, a Filosofia ao tocar em assuntos e temas que transitam nas ciências particulares porque, como visto, tem como objetivo estudar a realidade como um todo, possui a peculiaridade de formar “pontos de contato que permitem a elaboração de um desenho curricular hormônico e integrado” (p. 22).
            Sendo assim, a defesa para a presença da Filosofia no currículo escolar tem, como intuito, propiciar retorno positivo às demandas intrínsecas e inerentes ao processo de ensino-aprendizagem dos estudantes de acordo com as suas curiosidades mais básicas sobre suas experiências de vida (Rocha). Isso se justifica porque “se essas curiosidades não forem acolhidas na aula de Filosofia elas ficam sem tratamento no ambiente escolar” (p. 33). Dessa maneira, sem a Filosofia, não haveria um espaço destinado exclusivamente para a reflexão sobre conceitos que são a base para a constituição de um currículo coeso e complexo. Uma vez destituídas as lacunas do currículo, o processo de ensino aprendizagem dos estudantes é enriquecida (Rocha).
Por isso, se buscamos um currículo holista, é necessária a presença da Filosofia como disciplina escolar por duas razões, a saber, 1) sua didática propicia a integração curricular (ROCHA) e 2) em função de sua didática, sua presença nas instituições escolares fomenta, conforme o que pretende as Orientações Curriculares, a elaboração de projetos pedagógicos de maneira cooperativa e integrada.  Quanto à segunda razão, as demais disciplinas não estão isentas de criar métodos que tenham como objetivo estabelecer canais comunicativos no currículo escolar. Conforme Rocha “As iniciativas nessa direção podem e devem ser tomadas por todas as áreas do conhecimento representados nos cursos de formação de professores” (p. 22), ou seja, os cursos de licenciatura têm o compromisso de desenvolver um currículo holista. Entretanto, a Filosofia, em função de possuir uma natureza que a difere das demais disciplinas (como visto no parágrafo anterior), possui uma didática que lhe é única, a saber, estabelecer a relação entre as diferentes disciplinas particulares a partir de conceitos que nelas transitam, mas que não são, nelas, devidamente estudados uma vez que não são questionados e nem colocados em um espaço de reflexão (ROCHA).  Por isso, a primeira razão se justifica porque a Filosofia possui, conforme Rocha, uma didática especial.
 O argumento referente à didática da Filosofia segue de acordo com a sua natureza. As disciplinas, de acordo com as Orientações Curriculares, são um recorte de uma dada área do conhecimento, sendo assim, cada disciplina particular tem, como enfoque de estudo, uma parte da realidade. A Filosofia, por sua vez, é uma disciplina que estuda a realidade como um todo, então, ela não é um recorte, mas uma “costura” entre as áreas do conhecimento visando, como dito anteriormente, uma abertura que instiga o estudante a ampliar a sua visão sobre o mundo e a si mesmo. Dessa forma, de acordo com Rocha, “todas as áreas do currículo escolar podem ser abordadas com os instrumentos conceituais da Filosofia” (p. 22). Portanto, a Filosofia, em função de sua natureza, é uma disciplina que tem uma especificidade que a diferencia das demais; por isso, possui uma didática que Rocha nomeia como sendo especial, pois ela visa integrar os fragmentos a partir dos conceitos pertencentes às disciplinas particulares de maneira a conferir ao currículo uma unidade. Dessa forma, a sua didática visa uma “estratégia de trabalho que vá além dos limites de cada disciplina em particular” (p. 23).
            Para a Filosofia empregar a sua didática visando a integração das disciplinas, é necessário, para isso, ter, como objeto de seu estudo, segundo Rocha, os conceitos transversais, pois são estes que fornecem caminhos para o estudante transitar no mundo como um todo. Portanto, defendemos uma “transversalidade pedestre” e para isso precisamos “falar aqui em dominar conceitos” (p.30). Conforme consta nas Orientações Curriculares, “a Filosofia é teoria, visão crítica, trabalho do conceito, deve ser preservada como tal” (p. 35) – O grifo é meu. Ainda de acordo com as Orientações Curriculares, a Filosofia tem, como natureza, propiciar a reflexão acerca de conceitos pertencentes ao cotidiano a partir do questionamento de seus significados para que seja possível a conscientização desses conceitos. Estes são designados por Rocha como sendo aqueles pertencentes à experiência comum dos sujeitos; por isso, a Filosofia possui uma “natureza reflexiva” (p. 22). Por fim, as Orientações também referem que o objetivo da Filosofia no Ensino Médio é fazer com que os estudantes possam se posicionar “diante dos conhecimentos que lhe são apresentados, estabelecendo uma ativa relação com eles e não somente apreendendo conteúdos” (p. 28). A peculiaridade da didática da Filosofia é trabalhar com conceitos para que sejam dominados pelo aluno a partir de um exercício ativo do pensamento.
Portanto, a Filosofia, de acordo com Rocha, como disciplina curricular do ensino médio, tem a tarefa de mapear esses conceitos que transitam entre as diferentes disciplinas e que são da experiência comum para desenvolver questionamentos e reflexões que façam com que os estudantes possam ampliar a sua compreensão do mundo possuindo um papel ativo nesse processo. São “conceitos fundamentais da experiência humana” que, quando questionados e trabalhados na disciplina de Filosofia, podem suscitar respostas que “comportam sempre uma abertura, pois dizem respeito ao modo como lidamos com as nossas convenções mais profundas” (p.35). Ou seja, o objetivo didático da Filosofia é a criação, no currículo, de “um espaço para enriquecer a experiência do aluno com aqueles conceitos que desempenham papel importante em muitas disciplinas particulares e que não são tratados por nenhuma disciplina particular” (p. 34). Por exemplo, abstrato é um conceito pertencente à matemática (números abstratos) e também ao português (sujeito abstrato); a questão é: o que é “abstrato”? O espaço para responder esse tipo de pergunta ocorre na disciplina de Filosofia, esta é o ponto de encontro das diferentes disciplinas (nesse caso, entre Português e Matemática) quando se busca compreender os conceitos que transitam entre elas. Movimento é um conceito visto na física (Movimento Retilíneo Uniforme – MRU), mas também é visto na história (História dos Movimentos Sociais) assim como, também, na geografia, como o movimento dos astros (movimento de rotação da Terra). Além disso, a Biologia estuda o movimento dos seres vivos e, quanto aqueles que despendem toda a sua vida sem se locomoverem (seres fixos), ainda assim possuem movimento na medida em que suas células se movem. Ainda podemos inserir o conceito de movimento na literatura (movimento dadaísta, cubista e etc). Ora, mas o que é movimento? O movimento é dado por um Primeiro Motor Imóvel como vemos na tradição metafísica (ou seja, ele advém de uma força externa), ou ele é dado pela própria matéria que constitui cada coisa de acordo com o seu conteúdo como vemos na tradição do materialismo dialético (ou seja, o movimento advém de uma força interna)? Ainda há aquele, como Zenão, que argumentou que o movimento não existe.
O aluno, conforme Rocha, “poderá ter suas experiências de aprendizado enriquecidas se o currículo lhe oferecer este espaço de razões e argumentos sobre conceitos fundamentais da experiência humana” (p.34). Pois, como visto, são esses conceitos que fornecem a integração entre as disciplinas; no exemplo dado, houve a integração de quatro disciplinas particulares a partir da “mudança de posicionamento do conceito”. Ou seja, para enriquecer a experiência de aprendizado, “precisamos compreender os mecanismos que mostram que o conceito que desempenha um papel operatório em um caso passa a ter um lugar de conceito objeto em outro” (p. 111). Então, de um conceito que é tido como operacional na medida em que a curiosidade sobre ele é despertada sobre os aspectos particulares da realidade, ou seja, o conceito de movimento opera de um modo no MRU e de outro modo nos Movimentos Sociais, o conceito muda de perspectiva no momento em que suspendemos os nossos juízos (conforme Chauí citada por Rocha), pois podemos questioná-lo a partir de uma curiosidade sobre o conceito relacionado a ele mesmo, dessa forma, ele passa a ser o objeto de estudo advindo de uma curiosidade sobre todas essas curiosidades particulares. O que é movimento? Por que ele existe? Ou ele não existe? Se existe, qual é a fonte que ocasiona o movimento? Ela advém de uma força externa à matéria ou é interna a ela? Pode haver movimento naquilo que está fixo? O movimento, portanto, é pensado em tudo o que se move e não ficando restrito aos astros, aos seres vivos e etc. É por isso que a Filosofia, conforme Rocha, exercita o desenvolvimento de “habilidades metaconceituais” que surgem a partir de nossas curiosidades sobre as coisas mais comuns que ocorrem em nossas vidas que nem sequer paramos para interrogá-las. É o exercício de colocar o mundo em suspensão diante da razão argumentativa.
Por isso, Rocha confere à Filosofia a disciplina que possui “as curiosidades sobre todas essas curiosidades” (p. 32). O modo de como compreendo essa forma de conceber a Filosofia se dá em função de que ela excede os recortes feitos pelas disciplinas particulares, ou seja, a sua proposta didática é tomar o conceito de maneira mais geral possível (conceito como objeto) e não implicado em aspectos particulares do mundo (conceito como operação em cada fenômeno específico como no exemplo do movimento visto acima). As disciplinas particulares enfocam justamente os aspectos particulares (por isso, são um recorte da realidade), enquanto a Filosofia, por sua vez, enfoca a realidade como um todo (essa é a sua natureza). Nas disciplinas particulares, portanto, a curiosidade advém de uma tentativa de compreender o conceito operando em cada caso particular; na Filosofia, a curiosidade advém de compreender o conceito envolvido no mundo como um todo, ou seja, excedendo cada aspecto particular da realidade. Por isso, a Filosofia é uma curiosidade do conceito no mundo como um todo, engloba cada caso particular em que ele opera, em outras palavras, é a curiosidade sobre todas as curiosidades.
Para a mudança do estatuto do conceito, é importante o tipo de pergunta feita. São perguntas que, como visto, excedem as disciplinas particulares na medida em que visam “colocar o mundo diante de nossas capacidades de argumentação” (Rocha, p. 35) e as respostas dadas pela Filosofia se referem ao modo de como cada um lida com suas “concepções mais profundas” (p. 35). É por isso que a disciplina de Filosofia trabalha com conceitos que são pensados não apenas pela lógica do conteúdo da disciplina, mas, também, pelo envolvimento dos esquemas conceituais de cada aluno, ou seja, há uma interação entre o conceito trabalhado com o modo de como cada estudante se envolve com ele a partir de seu próprio modo de pensar (conforme a Lógica de Conteúdo e de Aprendizagem de Kant mencionadas por Rocha). “Cada um terá modos especialíssimos de achegar-se” (ROCHA) aos conceitos. Portanto, um trabalho destes permite uma forma de revermos o modo de como pensamos sobre os aspectos básicos de nossa realidade. É uma suspensão para questionar a si mesmo.