segunda-feira, 8 de julho de 2019

DA TRANSMISSÃO

            No presente semestre, houve disciplina cuja atividade era elaborar um conceito escolhido pelo interesse do estudante de modo a relacioná-lo à prática docente. Pensei no conceito de 'transmissão' e o elaborei conceitualmente ao longo de quatro meses. O critério era não ultrapassar três páginas; portanto, ainda estou o desenvolvendo e, conforme for avançando, atualizo a presente postagem. Então, o trabalho abaixo é resultado parcial sobre o modo como tento compreender o conceito 'transmissão'.


Para desenvolver o presente texto, é preciso, antes, fazer uma definição operacional de dois conceitos, a saber, emissão e omissão, isto é, defini-los para que seja possível, então, operar em sentido inteligível não com esses dois, mas com outro conceito, a saber, ‘transmissão’. Portanto, o objetivo ao longo do semestre é encontrar uma definição para o conceito de ‘transmissão’ de modo a oferecer o seu modus operandi no exercício teórico-prático[1] docente. Aqueles dois conceitos introduzidos serão, primeiramente, definidos com intuito de destacar sua diferença em relação àquele pertencente ao objetivo proposto.
Sugiro definirmos ‘emitir’ enquanto o ato de ou enviar ou colocar ou inserir em um espaço X (seja concreto ou abstrato) alguma coisa T (também ou concreta ou abstrata) de modo que esta afeta, de algum modo, aquele, ou seja, o espaço, de algum modo, sofre uma mudança quando a coisa é ou enviada ou colocada ou inserida nele; a ‘emissão’, portanto, é o fenômeno de T sendo ou enviado ou colocado ou inserido em X e, em função disso, X tem mudança, isto é, ele passa a ser afetado por T. Alguns exemplos podem ser ilustrados: ‘a emissão de gases poluentes’, ‘a emissão de um cheque’, ‘eu emito um som alto’, ‘eu emito boas vibrações a ele, ‘o professor emitiu informações’ e etc. Todos exemplos, portanto, indicam que algo T foi ou enviado ou colocado em um espaço X. Apenas por curiosidade, é possível se dar conta de que é necessário mencionar o que é o algo X, enquanto o espaço T, por sua vez, não temos sua informação, apenas o supomos; sua informação não é necessária, portanto. Em nenhum dos exemplos foi mencionado em que local os gases poluentes foram emitidos, em que local o som alto foi emitido, mas é preciso saber que o que se emitiu foram gases, sons e etc. Talvez não seja apenas curiosidade, se utilizarmos o seguinte exemplo “ideias foram emitidas”, ressalta-se, como mencionado de acordo com a definição, que ideias podem ser emitidas em um espaço abstrato (o que não significa que seja inexistente como, por exemplo, o espaço definido por Guatari de ‘Cartografia’ (1986) é um espaço abstrato que representa um espaço concreto, ele existe, portanto).
Quanto à palavra ‘omitir’, não é o oposto de ‘emitir’, pois se emitir é inserir algo T em um ambiente X, então ‘omitir’, caso fosse o oposto, seria retirar algo T de um ambiente X; todavia, não é assim que se segue. ‘Omitir’ não requer ação, pois significa apenas não inserir T em um espaço X, isto é, ou não enviar ou não colocar ou não inserir em um espaço X alguma coisa T. Portanto, não há mudança no espaço, este permanece o mesmo, também não implica, necessariamente, haver algum tipo de alteração em algo W envolvido enquanto efeito da omissão (algo W enquanto efeito também ocorre, não necessariamente, na ‘emissão’). Por exemplo, “professor omitiu uma informação”. A informação, portanto, não foi retirada, apenas não foi inserida no espaço; este, por sua vez, não tem nenhuma mudança, apesar disso, pode acarretar algum tipo de efeito nos alunos, supomos que, ao omitir uma informação, os alunos não sabem o dia que não haverá aula e, ao chegar, deparam-se com a porta fechada e, assim, podem se sentir com raiva. Quanto à emissão, os gases poluentes, uma vez colocados no espaço, geram efeitos prejudiciais à saúde das pessoas (estas, então, estão envolvidas enquanto efeito da emissão). Portanto, tanto omissão quanto emissão causam efeitos no espaço de modo que as coisas W envolvidas podem ou não reagir; a diferença é que, enquanto a emissão insere algo no espaço, a outra não retira, pois, o que há, é ausência – ou, se preferir, lacuna.
Pretendo sustentar que ‘emissão’ e ‘omissão’ são relações de unilateralidade. No contexto pedagógico, que é de nosso interesse, ou ao emitir ou ao omitir um conteúdo na sala de aula aos estudantes, ainda que estes possam se sair prejudicados enquanto efeito da omissão, ainda assim, estão em relação meramente de recepção diante das informações ou enviadas ou não pelo professor; e mesmo que a emissão de conteúdos implique mudanças no espaço e gere efeitos nos ouvintes, ela não é desenvolvida em “saltos qualitativos”[2] (Morin) naquela realidade espacial, é como se fôssemos colocando objetos no porão de casa, ficam lá, só não o enterramos porque se espera que tais inutilidades se tornem úteis um dia: mera ilusão de um ego prendido. É como se você chegasse em uma cidade em que está sendo acumulada, durante anos, por propagadas políticas emitidas em veículos de comunicação de modo que nenhum dos habitantes com quem você conversa nem ao menos questiona ‘o que são essas propagandas?”, “por que há propagandas?”, “de onde elas vem?”, “o que tem por trás daquilo que elas mostram?”. Os habitantes são apenas receptáculos que ora reagem ou não aos efeitos, nunca terão utilidade porque não transformam a realidade, pois, não necessariamente, reagem – a ação, por sua vez, não ocorre. É como se estivessem anestesiados do excesso da emissão.
Importante destacar que a relação entre emissor-receptor/omissor-receptor, ainda que unilateral, não implica, necessariamente, que o receptor seja passivo, ou seja, ele pode ter alguma resposta frente à emissão/omissão. Como visto, o professor, ao omitir uma informação na sala de aula, pode gerar, como efeito, resposta dos estudantes, mas esta resposta não é necessária, ou seja, os estudantes ora podem ou não fazer algo. Além disso, se feito algo, a resposta é uma reação frente ao estímulo (seja positivo ou negativo) do professor em relação ao meio, sendo assim, o efeito está mais para uma reação do que para uma ação propriamente dita -  e tal ponto é de importância para introduzir o conceito de transmissão, uma vez que pretendo sugerir que esta implica, necessariamente, uma postura ativa (e não, de maneira suficiente, uma anestesia assim como os habitantes da cidade imaginária). Em outras palavras, não implica, necessariamente, que o receptor, em relação a uma dada emissão/omissão, tenha alguma reação; caso tiver, responde ao estímulo positivo (emissão) ou negativo (omissão) sem, necessariamente, envolver algum tipo de atividade cognitiva; por isso, a relação é quase que por instinto automático – como mencionado, é apenas receptivo, um receptáculo. Logo, não há quase diferença alguma, na qualidade da reação frente a uma dada emissão/omissão, entre humanos, não-humanos e coisas, pois estes ou podem ou não reagir àquilo que é emitido/omitido, por exemplo, o oceano pode reagir frente à emissão de poluentes em um dado rio assim como também uma pessoa W de uma dada religião pode reagir quando seu líder omite algum objeto T no espaço X. A pessoa é um mero reflexo do estímulo.
A ‘transmissão’, ou melhor, trans-missão, difere quanto à qualidade da relação. A ‘missão’ advém da palavra latina ‘mittere’, isto é, ‘enviar’; ‘trans’, por sua vez, advém da palavra grega ‘meta’, que significa para além, por exemplo, ‘metafísica’ é o que está para além da física. Logo, ‘trans’ é o que está para além daquilo que faz referência, ou seja, se há uma coisa T seja abstrata ou concreta existente seja em espaço X ou material ou abstrato, fazer referência à coisa T em si difere de fazer referência para além da coisa T em si. No caso da ‘trans-missão’, denota-se o que está para além do envio, ou seja, transmitir é realizar algo que está para além da emissão/ omissão do dado em si. Necessário analisar, portanto, o que está para além do envio ou não-envio em si.
Quando um estudante emite/omite uma informação T na sala de aula, colegas e professor não necessariamente reagem frente ao que ele diz; entretanto, se há gestos sensíveis que envolvem, por sua vez, atenção sensível tanto do estudante quanto dos colegas e professor, então há tentativa de compreender não só a fala em si (o que foi emitido/omitido), mas, também, o que está para além da fala, ou seja, o que está por trás: aí ocorre transmissão. Em outras palavras, é o que faz referência para além do dito (conteúdo emitido) e do não-dito (conteúdo omitido) que implica no comprometimento de ter postura ativa para percorrer a cadeira de associação que leva para além do conteúdo dado em si de modo a compreender o que ele significa. A compreensão por meio de gestos sensíveis que envolvem atenção sensível àquele que emite/omite alguma coisa T no espaço X passa a abrir um campo que transcende a emissão/omissão de T em si, há algo que faz referência para além tanto do que é dito quanto do que não é dito. Então, para compreender a transmissão e percorrer sua associação, implica, necessariamente, que os sujeito envolvidos, uma vez que precisam buscar o que está para além do dito e/ou do não-dito em si, terem ação, pois compreender o que está ‘por trás’ não é mera reação que ou pode ou não ocorrer; pelo contrário, é justamente a necessidade de ação, pois requer um mínimo de envolvimento. Por isso, há, na transmissão, relação bilateral porque os sujeitos estão vinculados em seus gestos sensíveis de modo a compreenderem e a buscarem, em dinâmica coletiva, a referência que está para além de T em si (sendo que a atenção sensível também ocorre no próprio estudante que fala, logo, ele passa a fazer parte do processo). Uma vez que todos fazem parte do processo da transmissão, isto é, compreender o que está para além daquilo que foi dado em si, há a formação de um coletivo.
No momento que um estudante fala uma ideia que teve e comunica um pensamento que pode ser expresso, essa sua forma de significar as suas associações que são frutos de sua atividade cognitiva, insere-se no espaço tendo um significado dado. Uma vez que demais estudantes, professor e, inclusive, o próprio estudante que fala estão sensíveis àquele significado dado, há sua vinculação cuja implicação é agir sobre ele de modo a cada um dar a sua forma de significa-lo para si e tentar compreender como cada um buscou a sua forma de significar para si, assim, resulta necessariamente em compreender o que está por trás do significado dado em si, pois  no momento em que se busca significar o significado dado em si, os sujeitos já estão comprometidos com uma busca para além daquilo que foi, em si, dado como significado de modo que até mesmo o próprio estudante que lançou o significado dado em si pode, ele mesmo, dar uma nova forma de significar o que foi dado em si. O processo, portanto, abre um campo de entraves dialógicos, alguma confusão de significados ocorre, discorre-se na necessidade de compreender tanto a si quanto ao outro e, também, ao Outro, pois o que está por trás do que está por trás daquele que fala: é sua cultura, é sua história, é sua comunidade? Portanto, não há apenas uma reação, mas uma ação de formação de vínculos que repercute em um coletivo que busca desenvolver alguma síntese nesse campo de significados que tem intuito de percorrer e compreender o que está por trás do significado em si. Haverá dúvidas, estranhamentos, incertezas, incômodos, desânimos seguidos de reânimos, tensões, espantos, surpresas e etc.
Esse processo dado pela transmissão é justamente o rico resultado de trabalho pedagógico que realizamos por meio da arte ao longo do semestre. O objeto de pensar, uma vez colocado no espaço, desencadeou em processo de compreender tanto o percurso feito que está para além do objeto de pensar dado em si quanto compreender a forma que o significa de modo que cada um teve a sua forma de significar aquele conteúdo estético. Na medida em que cada um se vincula com o outro para percorrer e compreender o que está para além do objeto em si, o pensamento se torno coletivo, pois há diferentes formas de significar o conteúdo; talvez se chegue em uma síntese, talvez não; entretanto, independente dela, o que é essencial é a abertura sensível à estética. Por isso, os choques sintético-exploratórios[3] advindos da própria prática artística que pode ser teorizada nas diferentes formas de significação.


[1] De acordo com a teoria marxista, Politzer (1935), Besse e Caveing (1970) destacam que sua epistemologia ocorre por meio do eixo teórico-prático, isto é, a teoria advém da prática de modo que ambas estão interligadas na produção de conhecimento científico.
[2] Morin refere que seu Paradigma da Complexidade é semelhante ao modelo de dialética de Hegel; quando trata sobre o seu conceito ‘saltos qualitativos’, refere que a complexidade requer forças contrárias para que haja um fenômeno de aprimoramento na qualidade da aquisição do conhecimento na medida em que resiste à fragmentação do saber.
[3] No livro ‘O que é Filosofia?’ de Deleuze e Gattari, os filósofos desenvolvem dialética sustenta por choques advindos das sínteses, mas mais no âmbito teórico; a transmissão, nesse caso, destaca papel fundamental também do eixo prático de modo a envolver explorações do fazer artístico.