terça-feira, 25 de novembro de 2014

A Interdisciplinaridade em Sombra Falada e Os Círculos da Lógica Schopenhauriana

Na postagem anterior, a tentativa foi conceptualizar a interdisciplinaridade de maneira breve e sucinta; provavelmente, tentar-se-á realizar mais desdobramentos acerca de sua terminologia em outros momentos, visto que sua análise teórica - como reflexo de sua práxis - é, indubitavelmente, interminável. Mas se há necessidade de buscar mais acerca de sua designação, recomendam-se leituras como “Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa” de Ivani Fazenda; “Interdisciplinaridade e patologia do saber” de Hilton Japiassu; “Interdisciplinaridade: ambições e limites” de Olga Pombo; “Introdução ao pensamento complexo” de Edgar Morin; “A fala” de Gusdorf.
Também foi mencionado o conceito-metafórico de “Sombra Falada” – este, nesse momento, será mais explorado - cuja designação remete à relação que há entre a mãe e o seu bebê – fenômeno muito utilizado pelos psicanalistas, nesse caso, a atribuição é de Piera Aulagnier – onde este tem como sua sombra a fala de sua mãe cujo discurso impõe em seu filho um desejo que é seu (da mãe). Nesse sentido, há uma fala que não é de si, pois pertence a outro. Se se transpõe esse caso em outra dupla relacional, como no caso do discípulo-preceptor, a sombra projetada pelo molde discursivo do preceptor configura o modelo a ser seguido pelo discípulo, este, nela, busca se guiar, esforçando-se – de maneira disciplinada - para que, dessa maneira, tenha êxito teórico-prático da disciplina que está em busca de compreensão: é aconselhável, para isso, sem sombra de dúvidas, ter disciplina.
A interação a qual é estabelecida por essa dupla se dá a partir da transmissão metodológica, técnica e teórica ao discípulo pela via da disciplina cuja linguagem nela pode se envolver entremeando-se por um sistema sígnico cujo conteúdo será elaborado. A sombra em disciplina aguarda a chegada do sujeito-a-ser-significado, este, nela se aloca, guia-se pela sua sombra cuja ação é discipliná-lo. Ocorre que, esta ação subjetivante-disciplinar atua de tal modo que nem sempre acompanha o molde no qual se configurou para encaixe, é suscetível de se destoar à sua imagem e semelhança; múltiplas intempéries podem ocasionar sua não introjeção podendo esta ser ou total – indo seja ao oposto dela ou, simplesmente, à separação sem fazer oposição, se é que isso é possível, mas discutível – ou parcial – adere-se ou a algumas partes dela e, dessas, configura-se em outra, ou, além de aderir a algumas de suas partes, acrescentam-se novas, tendo alguns aspectos originais e outros já nela existentes. Dessa maneira, o discípulo acaba por ele mesmo, em algum momento, falar sua sombra que, como mencionado, pode se dar de maneira ou parcial ou total; então, essa se reconfigura em outra gerando outro modelo de sombra cuja repercussão é falar uma nova disciplina – esta, repetindo, parcial ou total em relação à anterior. Vale destacar que esse processo nem sempre ocorre, o discípulo pode se manter fiel à sua sombra de vez que ora dela terá consciência ou não, inclusive pode se esforçar constantemente para moldar seu corpo à sua pré-projeção – pois a sombra falada, nesse caso, é uma projeção de cunho disciplinar anterior ao corpo subjetivo.  
 Quais fenômenos podem ser destacados como fatores hipotéticos desse processo de não cumprimento do corpo subjetivo à “sombra (disciplinar) falada”? Alguns serão destacados, provavelmente existam diversos, mas nada impede que em outros momentos sejam postados. A personalidade do discípulo - da espécie humana - envolve – descrevendo-a de maneira sintética – tanto os aspectos de temperamento quanto os de caráter, os primeiros mais relacionados à estrutura genética e fisiológica; os segundos, ao campo externo e relacional. Portanto, frisa-se que há uma relação mútua entre temperamento e caráter (temperamento + caráter = personalidade). Os traços do modo de ser podem influenciar o desenvolvimento de posicionamentos divergentes à disciplina cuja sombra originou; um sujeito que manifeste mais críticas e que tenha um modo autônomo de viver, provavelmente irá perceber que sua sombra disciplinar não condiz totalmente consigo, dessa forma, irá se movimentar total ou parcialmente contra a ela podendo gerar, então, uma nova disciplina – ou nem tão nova, mas com algum grau de semelhança - elaborada por si.
O tipo de ciência também contribui para o desenvolvimento de divergências entre discípulo-preceptor. Cada área científica possui as suas especificidades e particularidades em seu modus operandi cujo processo de ser-científico configura, em certo grau, o fenômeno de ser-sujeito. Em palestra sobre Freud e a Psicanálise, o filósofo Ney Branco, ao tratar sobre a teoria de Foucault, relata que, para este teórico – e pelo que compreendi - existe um fenômeno interessante pelo qual o funcionamento científico perpassa: existem teorias cujos pós-teóricos delas podem seguir fielmente o seu modelo disciplinar; há outras em que isso não é possível, os pós-teóricos delas terão que segui-la ou parcialmente, ou se separar dela totalmente – retomando: se é que de maneira total é possível, mas discutível. Por exemplo, Freud está sempre em destaque no âmbito científico, visto que, para elaborar ou uma teoria pós-freudiana ou, inclusive, uma contra-Freud, é necessário, inevitavelmente, mencionar, descrever e compreender a Psicanálise freudiana para realizar esse trabalho. Nesse caso, a sombra-falada-disciplinar psicanalítica de Freud estará atuando no corpo-subjetivo do sujeito, este, então, para formular sua teoria, irá partir dessa sombra mesmo que dela tenha que se desfazer em algum momento. Isto o torna discípulo, necessariamente? Não, mas, de alguma forma, tem que compreender essa disciplina - às vezes, compreende melhor do que o próprio discípulo, mas para isso, teve que receber instruções e aprendizagens, funções semelhantes ao discípulo.
Outro fenômeno destacado é o acompanhamento das modificações da realidade externa, ou seja, o contexto sócio-histórico-cultural sofre mudanças ao longo do tempo e, também, seu espaço. Nesse caso, a sombra disciplinar originária permanece lá; aqui, ela já não condiz mais como antes. De alguma maneira, a disciplina originária se torna incapaz - ou parcial ou totalmente - de gerar compreensões acerca do contexto atual, quando isso acontece, alguns de seus discípulos podem re-organizá-la a partir dessa nova organização externa. Outros, por sua vez, mantêm-se fiel a original; há, também, aqueles que dela se desfazem, indo ao encontro de outra disciplina que se faz original nesse novo contexto. Poder-se-ia discutir o que os levam a isso; no entanto, nesse escrito, não vem ao caso. Apenas se tenta realizar uma compreensão de mais um motivo de divergências relacionais entre preceptor-discípulo.
Há também a maneira pela qual o vínculo entre o discípulo e seu preceptor é estabelecido. Esse fenômeno elucida o preceptor presente na dinâmica disciplinar de maneira mais destacada do que nos anteriores. A relação entre ele e seu discípulo, tendo entre eles a disciplina em questão, é um fator que também influencia seu desenvolvimento. As vicissitudes advindas do vínculo podem gerar conflitos os quais irão influenciar de maneira ou positiva ou negativa a transmissão da disciplina em questão. O que pode ocorrer é que, mesmo o vínculo sendo negativo, a disciplina continua sendo objeto de interesse ao discípulo; dela, ele não se abstém, pretende seguir a sombra disciplinar independente de quem a desenvolveu; no entanto, ainda assim, nada impede de, em algum momento, também se opor a ela de maneira ora total ou parcial, desenvolvendo outra à sua maneira.
Há duas correlações dispostas em campos opostos que, quando em prática, destoam - por mínimo que for - a sombra disciplinar original (advinda do preceptor): talvez não haja possibilidade de se opor de maneira total a ela; o contrário, que seria segui-la de maneira “pura”, também parece ser impossível. Mesmo que se tente se opor a ela de maneira total, e esse é o ponto o qual pode ser discutido, sempre haverá alguma influência, nem que seja um mínimo traço. Talvez em nada uma disciplina advinda do discípulo será igual àquele que a desenvolveu, visto que este, o preceptor, também possui sua própria personalidade e seu próprio modus operandi que lhe é único e singular.
Essa reflexão permite utilizar, para um auxílio compreensivo, a lógica de Schopenhauer, em seu livro A Arte de Escrever, cujo funcionamento corresponde à palavra de uma determinada língua que, quando traduzida para outra, por mais semelhante que se torne na outra linguagem, não é possível ser igual. Para ilustrar esse fenômeno, o filósofo destaca que dois círculos nunca serão concêntricos, pois não conseguem sobrepor-se. No caso da Interdisciplinaridade em Sombra Falada, a tentativa, aqui, é tomar o círculo como sombra, a sombra falada disciplinar originária (pertecente ao preceptor) quando em ação ao discípulo por ela subjetivado, este a fala gerando uma sombra que não é sobreposta à sombra falada disciplinar originária, pois não se sobrepõe a ela, nesse caso, as lógicas possuem, em partes, divergências, apesar de haver um ponto em que se conectam, pois, ali, há uma lógica compartilhada por ambas.

Segue desenho para ilustrar esse fenômeno:
1)

2)

Na figura 1, a “sombra falada disciplinar originária” (pertencente ao preceptor) é simbolizada pelo círculo cuja sua lógica nele está que, então, é projetada ao corpo subjetivo do sujeito. Este projeta a partir de sua ação subjetivante sua lógica em um círculo cuja sombra reproduz de maneira análoga à originária (de seu preceptor). Por isso, o sinal de igual, visto que as lógicas, simbolizadas como círculos, são idênticas; por isso, quando estes círculos são desenhados abaixo, eles se sobrepõem por completo.
Já na figura 2, a diferença é que o sinal não é igual, pois há uma linha que interfere que a sombra disciplinar originária seja projetada por completo no corpo subjetivo do sujeito, os fatores como personalidade individual, o tipo de disciplina que está sendo projetada, as modificações da realidade externa e o vínculo estabelecido influenciam, da mesma forma como a sombra originária, na constituição disciplinar do sujeito, este, então, projeta uma sombra parcial à original, gerando um disciplina não idêntica a do preceptor. Por isso, os círculos que simbolizam as lógicas do preceptor e do discípulo, nesse caso, não se sobrepõem totalmente, como desenhado abaixo. Onde há a sobreposição parcial, pode funcionar a interdisciplinaridade, mas é questionável, pois, nesse caso, haveria uma interdisciplinaridade plena quando há uma sobreposição total, o que pode não ser verdadeiro, visto que, reproduzir de maneira análoga uma disciplina não é sinônimo de ação interdisciplinar, mas, sim, com uma ação de muito rigor disciplinar. Sendo assim, para haver interdisciplinaridade, é necessária uma ruptura e uma analogia que ocorrem simultaneamente em duas lógicas, como no caso da figura 2. Por isso, nela, há um ponto interdisciplinar, porque existe, também, uma área de ruptura, diferentemente da figura 1.   
Portanto, a interdisciplinaridade, nesse caso, parece funcionar a partir de duas áreas contraditórias – ruptura e analogia -, mas que, de alguma forma, se retroalimentam em um funcionamento intermitente cujo processo também pode gerar modificações, visto que, os círculos das duas lógicas disciplinares, quando parcialmente sobrepostos, podem, também, sofrer influências de outras interferências externas. O quadro resultaria em uma rede de interconexões cujos círculos estariam interligados em alguma área entre si e, nesse ponto interdisciplinar, haveria o funcionamento de retroalimentação.

Referências:

AULAGNIER, Piera. Os destinos do prazer. Rio de Janeiro: Imago.
BRANCO, Ney. Freud e a Psicanálise. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EkISRTIPKJo
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. L&PM Pocket: Porto Alegre, 2009.

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