segunda-feira, 27 de abril de 2015

Reflexões sobre a interdisciplina Saúde Coletiva a partir da inter-poli-transdisciplinaridade morianiana

Após a leitura da obra “A Cabeça Bem Feita” de Edgar Morin, em seu Anexo 1, o autor descreve a disciplina como sendo uma instituição-organização, no sentido de que ela é uma instituição que se constitui a partir de uma organização que, quando em movimento, desenvolve regras, linguagens, signos, medidas, visão de universo - e entre outros fatores - pertencentes à disciplina. O movimento organizativo, ao instituir os princípios e as leis de uma disciplina, fundamenta um modo institucional o qual pode, também, ser um fenômeno organizativo, ou seja, a disciplina, uma vez instituída, não é estanque, visto que ela também pode ocorrer de ter, em seu alicerce, um circuito que perpassa uma energia reorganizadora que está interligada entre seu campo interno com o âmbito externo, dessa forma, a partir de um funcionamento de abertura-fechamento, é capaz de se re-restruturar e re-organizar a partir da análise entre o eixo que a une com a as duas realidades – interna e externa. Por isso, a organização também influencia e modifica a instituição ao longo do tempo e através do espaço em que se encontra.
O intuito desse escrito é relacionar os oito tópicos descritos no Anexo 1 com a disciplina Saúde Coletiva a partir de reflexões e contribuições de seu funcionamento disciplinar e, também, destacar exemplos vivenciados na prática.
Virtude da especialização e risco de hiperespecialização
A disciplina é auto-suficiente. Ela tem seu um objeto próprio de si cujo estudo só a ela pertence, como se este fosse exclusivo dela. Os conceitos, teorizações, hipóteses, técnicas e métodos desenvolvidos a partir de sua relação com tal objeto vão sendo desenvolvidos a partir dela e é de sua propriedade. Nesse caso, a disciplina, ao limitar o seu espaço, também limita o espaço de outras disciplinas. Além disso, ao realizar esse funcionamento, ela aprofundará seu enfoque disciplinar em objetos específicos de seu objeto, tornando-se hiperespecializada, podendo originar até mesmo limites dentro de seu próprio limite. Há, então, duas possibilidades advindas dessa formatação: 1) ou se fecha em si mesma e permanece com um olhar apenas para seu objeto de estudo; 2) ou, ao realizar esse processo, busca contrabalencear sua disciplina a partir de uma abertura com outras, em uma tentativa de funcionamento interdisciplinar, dessa forma, ao se dinamizar, evita o estancamento. A Saúde Coletiva tem, em seu terreno de sustentação, um alicerce cuja instituição tem como característica uma movimentação re-organizativa e inter-dependente, nesse caso, ela não parece ser, em si, auto-suficiente, pois seu modus operandi é inter-disciplinar. Nesse caso, poder-se-ia refletir se ela é ou uma disciplina ou uma interdisciplina; provavelmente, esta é exclusiva da Saúde Coletiva, diferentemente de outros cursos da saúde. Assim, ela não teria risco algum de uma hiperespecialização, visto que seu objetivo é um enfoque tanto no todo quanto nas partes. Sendo assim, o que se conclui é que a Saúde Coletiva é uma Interdisciplina – e não uma Disciplina. Isso acarreta em diversos fatores os quais envolvem sua fenomenologia e existência interdisciplinar, sua teoria, sua prática, sua técnica e entre outros N fatores. A ressalva é que essa forma, talvez inédita, de conceber a Saúde Coletiva como interdisciplina é uma hipótese que está sendo destacada aqui, ou seja, a afirmação que faço é mais para gerar reflexão do que para conclusão.
  O Olhar Extradisciplinar
O olhar voltado para além dos limites circundantes da disciplina possibilita uma observação de ou de um objeto, ou de um fenômeno, ou de uma linguagem ora diferentes, ora estranhos, ora semelhantes com a disciplina em foco. Isso possibilita ao observador, ao buscar a compreensão da disciplina extra, desenvolver outros meios e re-criar a sua disciplina. Esse fenômeno tem a ver com alteridade, visto que é a partir da intersubjetividade que o outro se constrói a partir do Eu e que este também se constrói a partir do outro, nesse caso, a tarefa é possibilitar desenvolvimentos teóricos ao depositar a Saúde Coletiva no campo de outra disciplina assim como desenvolvê-la no momento em que é depositada com as teorias advindas de seu campo externo. Nesse caso, a curiosidade é uma característica importante ao sanitarista, visto que ela possibilita não só a criação de questionamentos, mas a busca para resolucioná-los a partir da alteridade, ou seja, por meio da busca do outro para que, com o outro, possa resolver seus impasses e, também, do contexto que os envolve. Há a necessidade de uma análise do todo para o processo de gestão e de planejamentos na área da instituição de saúde, ou seja, a observação do local, de seu entorno, dos profissionais que nele atuam bem como de suas especialidades e funções desempenhadas, o conhecimento de outras disciplinas é imprescindível – até mesmo porque ela é uma interdisciplina –, o conhecimento e observação dos pacientes e do público que frequenta o ambiente e entre muitos outros fatores. Isso significa que o sanitarista tem que ter, conforme a pedagoga Ivani Fazenda, uma Atitude Interdisciplinar, ou seja, ir a busca do outro-conhecer, do outro-fazer e, a partir disso, integrar sua prática para analisar o que está em funcionamento. Na Psicanálise há um conceito chamado de Ponto Cego, ou seja, quando o analista não consegue enxergar um fenômeno que está sendo falado pelo paciente, mas que ainda não é captado pelo profissional. Nesse caso, o Olhar Extradisciplinar do Sanitarista seria – a partir de um modelo ideal – evitar pontos cegos e, para isso, a interdisciplinaridade é uma ferramenta fundamental para ter uma visibilidade do funcionamento recíproco entre as partes e o todo. Sem sombra de dúvidas que o sanitarista terá, em algum momento de sua práxis, pontos cegos, visto que é inevitável esse processo ocorrer, pois não há como obter uma elucidação de todo um fenômeno em movimento que se apresenta no presente momento. Provavelmente, há estratégias e planos os quais possam auxiliar para que o ponto cego não seja grande demais; no entanto, não será aqui discutido, mas a própria dinâmica interdisciplinar é um meio a ser utilizado, assim como a intersetorialidade, por exemplo.
Objetos e Projetos Inter-Poli-Transdisciplinares
Nesse tópico a discussão se embasa em objetos e projetos que tenham uma dinâmica e dimensão de ordem inter-poli-transdisciplinar, nesse caso, a descrição desse conceito é de um objeto ser analisado a partir de um enfoque multiperspectival e, também, de alguma forma, que ele possa também ser manuseado. No caso dos projetos, estes partem do princípio de que uma pesquisa deve ser realizada a partir de um mesmo enfoque, como a Revista de História dos Annales, como menciona Morin, que tem como característica ser um projeto científico inter-poli-transdisciplinar, visto que, ao compreender a idade média, esta é analisada não apenas pelos aspectos históricos, mas, também, econômicos, geográficos, geológicos, sociológicos, psicológicos e etc. Além disso, ao examiná-la, são necessários profissionais de cada área de conhecimento, sendo que o fator econômico é influenciado pelo âmbito psicológico que, por sua vez, é influenciado pelo funcionamento sociológico e vice-versa. Ou seja, o grupo, naquele contexto, ao ser compreendido a partir de um projeto inter-poli-transdisciplinar, é estudado a partir da complexidade e da totalidade do conhecimento ao invés da parcialidade. É dessa forma que a Saúde Coletiva tende a funcionar, seu objeto, no caso, a Saúde, é analisado a partir de um enfoque multiperspectival; seus projetos, quando planejados, deve levar em consideração um paradigma da complexidade, ou seja, englobar os diferentes autores e especialidades responsáveis pelo seu modus operandi.
Os Esquemas Cognitivos Reoganizadores
Quando uma determinada disciplina realiza um processo de abertura para que as diferentes especialidades nela atuem para resolucionar seus enigmas, pode haver formulações de novas hipóteses e de novas configurações teóricas cujo desenvolvimento e planejamento inauguram Esquemas Cognitivos Reorganizadores, ou seja, há novas formas explicativas de compreender um fenômeno que, antes, era visto apenas por um olhar; todavia, pelo meio da interdisciplinaridade, é explicado com mais complexidade. O fenômeno é o mesmo, mas como seu enfoque é Reorganizado pelos Esquemas Cognitivos de ordem multiperspectival, a sua percepção subjetiva se expande. Pensando no caso da Saúde Pública x Saúde Coletiva, o ocorrido é que a primeira foi inaugurada por um olhar apenas biológico, essa era a compreensão do fenômeno Saúde; com a segunda, houve uma abertura de ordem interdisciplinar cuja consequência é de Reorganizar os Esquemas Cognitivos, dessa forma, o fenômeno Saúde se tornou complexo com a inserção de diferentes especialidades, visto que é nesse processo que ocorreram novas hipóteses e reformulações teóricas. O âmbito psico-cognitivo tem alterações positivas no momento em que se reorganiza rumo à ordem da complexidade em evolução, sendo que esta parece que ainda está ocorrendo, ou melhor, parece ser apenas o início!
Para Além das Disciplinas
O humano é um ser o qual as ciências tem que o observar a partir de uma não redução conceptual, mas, sim, por meio de um viés integral e holístico onde o estabelecimento de um paradigma – que será visto no próximo tópico – seja um fenômeno que transcenda à disciplina para que possa haver uma abertura à interdisciplinaridade. Morin destaca que, inclusive, há ciências que decretaram a inexistência do homem, visto que este não pode ser inserido nos critérios estabelecidos de uma disciplina. É exatamente o oposto disso que a Saúde Coletiva irá realizar, ou seja, um trabalho que torne o humano existente em uma dimensão da interdisciplina cuja compreensão permita sua existência a partir de sua totalidade.
O Problema do Paradigma
Há em voga uma nova formação paradigmática do âmbito científico cujo modelo é não mais se afastar do caos e dos conflitos, mas, sim, aproximá-los e estudá-los de maneira científica; por isso, a necessidade de envolver as diferentes especialidades para que este novo paradigma possa entrar em vigência. Vale ressaltar que ele já existe, a Interdisciplina Saúde Coletiva é ele em forma e em concretude - diferentemente da Saúde Pública a qual segue o paradigma anterior. O importante é realizar o seu movimento e o seu desencadeamento a partir da análise das problemáticas contemporâneas e, também, daquelas anteriores, mas que podem ser reatualizadas para uma recompreensão a partir desse novo paradigma que pode ampliar e aprofundar o conhecimento realizado anteriormente, bem como para abri-lo e reformulá-lo com novas contribuições e desenvolvimentos técnico-científicos atuais.
Invasões e Migrações Interdisciplinares
Nesse tópico, Morin destaca a existência de uma dinamicidade nas disciplinas composta pelas “rupturas entre as fronteiras disciplinares, da invasão de um problema de uma disciplina por outra, de circulação de conceitos, de formação de disciplinas híbridas que acabam tornando-se autônomas” (p.107). Nesse caso, a Saúde Coletiva, de alguma forma, tornou-se autônoma frente às ciências da saúde existentes – ou busca essa tentativa de autonomia –, mas não só, há, também, a presença de disciplinas outras que não são da saúde, como a sociologia e a antropologia, por exemplo. A Saúde Coletiva, por ter como fundamento a interdisciplinaridade, provavelmente, abriu-se à migração das disciplinas e as fusionou em conjunto com o seu “arcabouço disciplinar” próprio e exclusivo, dessa forma, ela possui aspectos que lhe são de si e outros que não; por isso, a sua interdisciplinaridade. No momento em que ela se fecha, constitui uma interdisciplina, ou seja, ela constitui uma nova formação de conhecimento e de área teórico-técnica. Esse fenômeno ocorre devido a diversos fatores, a própria configuração da sociedade pós-moderna resultou na liquidificação das estruturas sólidas, tornando-se liquefeitas, ou seja, isso permite um encontro entre dois âmbitos que, até então, pareciam divergir, mas que, a partir da troca interdisciplinar, possibilitou uma compreensão até antes impossível, e essa relação enriqueceu o desenvolvimento científico para a atuação do profissional da saúde, como o sanitarista. As migrações concretas, como destaca Morin, também propiciam a ocorrência de trocas disciplinares, como no caso de um teórico especialista de determinada área que, ao viajar para se encontrar com outro especialista de uma área divergente, buscam resolucionar um problema, nesse contato migratório e com resultados obtidos, desenvolve-se uma interdisciplina a partir das duas especialidades. O processo de Globalização também parece influenciar esse desenvolvimento migratório cuja interdisciplinaridade ocorre, a facilidade de acesso às teorias e técnicas realizadas em outro “lado do mundo” chegam de maneira aqui-e-agora “nesse lado”, assim, pode haver uma forma de interagir e analisar se esta é uma possibilidade de introjetar ou não os conteúdos de tal disciplina.
O Ecodisciplinar e o Metadisciplinar
Morin, nesse tópico, destaca que a interdisciplinaridade pode ser diversos países que se encontram em volta de uma mesa para resolucionar problemas mundiais, nesse caso, cada um pensa em si, não havendo realmente uma interação. Ou, então, a interdisciplinaridade pode ocorrer de forma a haver uma interação e cooperação mútua entre os diferentes sujeitos que estão envoltos em um mesmo problema. Ainda, a transdisciplinaridade é o fenômeno no qual ocorre a transcedência disciplinar, nela é onde acontece o choque da disciplina visto que ela é perpassada por diferentes forças disciplinares, mesmo antagônicas, as quais irão desenvolver teorias e hipóteses sobre ela. Mas não é apenas esses meios que existem, a ecodisciplinaridade se destaca por ser a compreensão de uma disciplina em relação ao seu campo tempo-espacial, é nele que ela deve ser analisada e estudada, pois condiz com o momento atual do estudo. Já a metadisciplinaridade, não menos importante,   confere a abertura e o fechamento como movimento dinâmico que ocorre na organização disciplinar. Nesse caso, a Saúde Coletiva deve ser “ecologizada”, ou seja, estar em sintonia com seu campo tempo-espacial e, para isso, deve seguir uma dinâmica metadisciplinar para que possa se abrir conforme as modificações contextuais e, também, fechar-se para elaborar e refletir acerca dos conteúdos que englobou durante o seu processo de abertura. Provavelmente, foi por meio desse fenômeno – eco e metadisciplinar – que a Saúde se transformou de Pública para Coletiva; no entanto, a abertura, assim como o fechamento, nunca são plenos, sendo assim, a Saúde Coletiva ainda tem aspectos advindos da Saúde Pública os quais desta nunca irá se desfazer porque confere um grau necessário de alicerce, como se fosse algo que fica em aderência. Por isso, a Saúde Coletiva possui “conteúdos genéticos de ordem disciplinar” da Saúde Pública somados aos conteúdos inaugurais e inéditos advindos da eco e da metadisciplina.


CONCLUSÃO
Esse panorama destaca a organicidade e dinamicidade da Saúde Coletiva, ela é uma interdisciplina que se encontra no desafio de ainda lidar com a complexidade, ou seja, os fenômenos parciais ainda são importantes no desenvolvimento científico; no entanto, na contemporaneidade, apenas eles não bastam, há que se ter, também, a realização de uma ciência com um enfoque multiperspectival que se encontra em processo de construção e reconstrução, aí entra a Saúde Coletiva.  Nossa consciência ainda não é capaz de compreender fenômenos opostos integrados em unidade; por exemplo, a descoberta da luz como onda e partícula não se deu de maneira simultânea, primeiramente, a partir dos estudos de Newton, a luz era um fenômeno apenas ondulatório, isso até o final do século XIX; já no século XX, descobre-se que ela é, também, partícula; dessa forma, descobriu-se que ela é uma unidade onda-partícula. No entanto, nossa consciência não a compreende em unidade, isso significa que nossa própria capacidade cognitiva e consciente ainda não é capaz de compreender e analisar um fenômeno de ordem da inter-trans-disciplinaridade – ao menos não sozinhos. Por isso, a ênfase do trabalho em grupo e em conjunto com diferentes disciplinas e atores teórico-práticos. Transcender à disciplina é um trabalho de cunho coletivo e grupal, envolvendo os sujeitos e a sociedade para a responsabilidade do desenvolvimento científico e tecnológico, sendo esta relação permeada pela alteridade, relação mútua e afetiva.

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